terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Ave rara




Sim, é verdade! Faço parte do grupo restrito das pessoas que não conduzem. Pior: não tenho, sequer, a carta de condução.
Sem arrependimentos, nem complexos, aguento os olhares arregalados,  a meio caminho entre o pasmo chocado e a condescendência compadecida, de quem considera ser essa uma situação um pouco estranha, ou mesmo indício de uma anormalidade qualquer. De quem não compreende como é possível viver sem "ter carro". E de todos os que adoram repetir, até à exaustão, a liberdade de movimentos e a comodidade que lhe são inerentes, achando, mesmo sem o dizer, deixando-o transparecer apenas nos olhos apiedados, que viver assim é ter a existência, de certo modo, mais limitada. 
Eu ouço-os e não quero saber. Às vezes, até sorrio interiormente, quando assisto à sua incapacidade de se deslocar de outro modo, horrorizados com a súbita e ocasional necessidade de ter de utilizar um transporte público, desconhecedores de qualquer opção que saia um pouco dos seus circuitos habituais. Ou quando os ouço falar do "meu carro", envaidecidos com proezas e performances, como se de uma extensão  de si mesmos se tratasse. E pergunto-me quem terá  afinal  a vida mais sujeita a dependências e restrições.
Enfim, é uma daquelas coisas que eu poderia ter feito e não fiz. Por acaso, como quase tudo o que me acontece na vida. Até tentei. Mas não correu bem. Foi há mais de vinte anos. A parte teórica, sem problemas. A prática, bem mais desastrada, marcou o meu primeiro contacto com o fracasso ao nível das aptidões. Nunca antes tinha "chumbado" em coisa nenhuma e achava, na altura, que teria jeito para tudo o que quisesse experimentar. "Não te esforçaste o suficiente", diziam-me alguns, "tu consegues sempre fazer tudo, se quiseres". Outros, falavam-me em persistência: "Raras são as pessoas que o conseguem à primeira. Tens de voltar lá e tentar de novo". E havia ainda os que, mais queridos, ou talvez não, tentavam consolar-me com pequenas pérolas, deste  género: "Todos os intelectuais têm dificuldade nas coisas mais práticas. É mesmo assim!" Um dia, farta de ouvir tanta opinião, deitei fora toda a papelada e não pensei mais nisso. Desmotivei, pois, pensando "não tenho pachorra para andar a insistir" e acomodada, também,  pelo facto de durante cerca de vinte anos trabalhar perto de casa.
Podia fazê-lo ainda? Claro que sim! Só que, agora, simplesmente, não me apetece. Hoje, familiarizada com esta condição, que não me engrandece nem me diminui, aceito-a como tudo o que acho que é assim e pronto.
E já estou habituada a andar de transportes, ou a andar a pé, que adoro. Desloco-me com a desenvoltura de quem sabe para onde vai e como pode lá chegar. Conheço muito bem  a cidade, tenho excelente memória e sentido de orientação, sei todas as ligações e o melhor caminho para chegar onde quer que seja. Há mesmo quem jure a pés juntos que, entre mim e um taxista, sou eu que levo a "palma de ouro". Há também, entre os meus amigos, quem diga que não vale a pena comprar GPS enquanto eu estiver perto.
Não preciso de carro para ir onde eu quiser. Posso até demorar um pouco mais, mas chego lá na mesma. Além disso, se quisermos ver o lado mais positivo da questão, os transportes podem ser uma interessante experiência do quotidiano. Há dias em que me divirto a observar e a ouvir as pessoas; noutros, refugio-me num canto e perco-me nos meus pensamentos, ao som de uma música qualquer. Consoante os humores de cada momento.
No entanto, adoro andar de carro. E, se por um lado, tenho "a mania que sou independente", como a minha mãe tantas vezes me dizia, quando se zangava comigo por eu não querer a sua ajuda, também não é menos verdade que adoro todo o tipo de mimos e atenções, que gosto muito me conduzam, que me abram a porta, que me levem a casa... Por isso, nunca peço uma boleia, mas aceito-as todas. E agradeço, reconhecida, porque sou pouco orgulhosa.
Se tivesse um carro meu, de certeza que muitas vezes me metia nele e andava por aí, sem rumo nem destino certo, como tantas vezes faço, caminhando. Mas, como quase tudo, é muito melhor fazê-lo em boa companhia.  Afinal, é  tão bom deixarmo-nos levar, tirar os olhos da estrada e ter disponibilidade para admirar o mundo à nossa volta. E partilhar o prazer da viagem com quem nos acompanha...

12 comentários:

  1. Por acaso confesso que achei a teoria dos intelectuais uma coisa genial... Genial, mas ao contrário... Lol... Eu por acaso ando a maior parte das vezes no meu dia a dia de transportes público, excepto para levar a filhota ao infantário.

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    1. Pois,tudo tem sempre um lado positivo e um lado negativo,ao mesmo tempo :)

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  2. Concordo que cada um é livre de fazer o que quer.Tirei carta há muitos anos mas eu vivo no campo e os transportos publicos quase que não existem,uma carreira de manhã e outra á tarde.

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    1. No campo, acredito que seja mai difícil deslocar-se sem carro, mas essa é uma realidade que desconheço. Sou uma lisboeta "dos quatro costados" (eheheh) - Mais urbana que eu,deve ser difícil. Seria incapaz de viver no campo,acho eu. O campo é bom para ir passear, mas só um bocadinho.
      Beijinhos
      Isabel

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  3. Cada um com as suas opções, não vejo qualquer problemas se com elas nos sentimos bem. Mas eu sou o contrário, aqui, Isabelinha: adoro conduzir e não ser conduzida:) Confio sempre mais em mim ao volante, sabe, sou horrível:) E o meu carro é um grande amor, sim :)

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    1. É como diz, Faty: O importante é sentirmo-nos bem. O resto não interessa nada.
      E, já agora, a despropósito: tenho ido ao "aventar" votar no seu blog! ;)
      Beijinhos
      Isabel

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    2. Gosto que me chamem Isabelinha :) Mas ninguém chama. Há quem me chame Bélita, mais ou menos a brincar...

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    3. Obrigada pelos votos, "Isabelinha", passei à final, devido à simpatia das pessoas, mas agora é que são elas :)
      Também gosto que me chamem Fatinha, em adulta, acho carinhoso e doce:) Em novita detestava:)

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  4. Este post quase poderia ter sido escrito por mim. Digo quase porque passei no exame à primeira em 1970. Ainda conduzi uns meses, mas tive um acidente estúpido junto à igreja dos Jeronimos com o carro do meu Pai e o arranjo custou uma fortuna. Deixei de guiar até pouco antes de casar, o meu ex- emprestou-me o carro para eu ter umas aulas de condução. Tive-as só que nunca conduzi, com medo de estampar o carro do meu marido. Depois fui para a província, onde o carro não me fazia falta, a Escola ficava a 15m a pé e havia quem me desse boleia. No Porto vivia a 5m da Escola, que tinha Infantário para os miudos. Não posso dizer que não me fizesse falta, sobretudo aos fins de semana, pois andava com os miudos kms só para eles brincarem num local mais verde. A certa altura em que ganhava melhor comecei a andar de taxi, mas mesmo assim gastava muito menos do que se tivesse um carro. Depois de reformada, ando feliz em qq transporte público de preferencia o metro do Porto que é uma maravilha. Ou de taxi, que é barato.
    Já fui convidada para o programa da Júlia Pinheiro para falar desta minha vivência, mas recusei porque não o faço por amor à natureza, mas porque tenho pavor a carros e detesto o cheiro da gasolina:))).

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    1. Somos diferentes nisso. Eu não não tenho pavor a carros. Bem pelo contrário. A vertigem da velocidade fascina-me. E, por isso, também gosto de motos. Aquilo de que eu não gosto é do culto do "ter carro". E, tanto nos carros como nas motos,prefiro ser levada. ;)
      Beijinho
      Isabel

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  5. Eheheh... Belinha (posso chamar assim...?), sou condutor de carro, moto e tractor, de forma que quando quiser boleia disponha :)

    Agora a sério, apesar de ter resolvido muito bem essa sua condição de transeunte, lembre-se de que nunca é tarde para fazer~se seja o que for. Se voltou à universidade, por que não à escolinha de condução, hum...? Digo isto porque fora das metrópoles há tanto local encantador! E meter uma bicicleta na expresso ou no comboio não deve ser coisa fácil... Depois, o conformismo não passa de um mal necessário, digo eu que ainda quero tirar o brevet e saltar de pára-quedas.
    Beijinhos:)

    ps: Não acho que haja aqui perda alguma de liberdade, mas questiono a de autonomia.

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    1. Vamos por partes, Paulo :)
      Belinha? É inédito, mas adoro! pode chamar assim, muitas vezes, sempre que quiser, que eu vou gostar...
      Quanto às boleia e, já que oferece, eu nunca digo que não. Então: é uma de moto, uma de carro e uma de tractor, se faz favor. Por esta ordem.

      Em relação à carta, a questão não é achar que "é tarde". Eu nunca acho isso. Mas é que não me apetece, percebe? E depois também não sinto essa necessidade, embora entenda o lado prático que pode ter.
      Quando tirar o brevet, também vou querer uma boleia; pode ser? Já quantoa saltar em pára-quedas, admiro-lhe a coragem mas acho que nunca seria capaz :))

      Muitos beijinhos mesmo!
      Isabel

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