domingo, 26 de janeiro de 2014

Boçalidade e carneirada


Em Setembro, muito antes da fatalidade do Meco e de o assunto estar na ordem do dia, já tinha falado das praxes. Agora, que o tema tem sido tratado quase até à exaustão, queria evitá-lo. Porque até já cansa. Mas pareceu-me que devia pelo menos partilhar um dos muitos textos que li, o de Ferreira Fernandes, ontem, no DN: 

O País a nu, como no Meco
Amanhã, os jovens corvos voltarão às ruas. Não se escondem, o fato é comum para todos e sobre ele uma capa pesada, faça sol ou frio. Aquele fato e capa não escondem a aceitação da mais bizarra das afirmações: somos manada. Num jovem não seria de esperar rebeldia e inquietude? Ora, ora, talvez agora o padrão seja outro, ser rancho, ser grupo. E de grupo sem mérito nem voo. Ali, naquele país inculto e pobre, anunciar pelo fato e pela batina uma conquista, mesmo patética, já é conquista: olhem, sou estudante universitário! Fica com a taça, jovem corvo. Nunca saberás que o mérito seria teres participado em debates e ganho, ou perdido, mas participado; seria teres gozado o prazer de aprender, de duvidar, de perseguires, mesmo erradamente, a luz. Mas esse não és tu. Tu, gozas os teus três, quatro anos de fato de luto, - o único diploma que te distinguirá a vida inteira, três, quatro anos a andar pelas ruas a proclamar nada. Entretanto, sobe um patamar e praxa. Isto é, leva a tua ambição ao nível dos fundilhos do teu traje. No começo, obedece e humilha-te. Serás premiado, depois, com mandar e humilhar. Fica-te por aí, rasteiro. De grande, só a colher de pau. Fica-te por aí, és o País. Sem saberes que um só dos teus podia redimir a todos. Um só estudante, bela palavra, no pátio de uma universidade, bela palavra, dizendo as mais certas das palavras para um jovem: não vou por aí.

Podia ter escolhido outros: Por exemplo o de João Gomes André no Delito de Opinião,  ou o de Pacheco Pereira no Público. Escolhi este porque destaca o espírito "Maria vai com as outras", que me parece estar em grande parte por trás de tudo isto. No fundo, participa-se nesta palhaçada sem se saber porquê e para quê. Sem se questionar. Só porque todos (ou quase) o fazem. Não faltam hoje, também,  nas redes sociais os que se dizem "orgulhosos" de terem sido "praxados". O que terão aprendido com isso?
Enfim, pertenço ao grupo dos que defendem que se acabe com esta coisa ridícula e sem sentido e com tudo o que há nela de  alarvidade, grosseria e degradação.
E pergunto-me se o que fez com que se chegasse a este estado de coisas não foi também um ensino  excessivamente preocupado com o imediatismo da nota do exame que tantas vezes nem leva a lado nenhum, por exemplo, e muito pouco, ou mesmo nada, com o desenvolvimento do espírito crítico e da capacidade de argumentação. É que, na verdade, somos todos de certo modo responsáveis, acho eu.

6 comentários:

  1. O problema da praxe, não é só a praxe. O problema da praxe é a sociedade que a pratica no extremo a que se permite. Por prepotência, porque é sempre bom ser quem manda e ver até onde se pode chegar. O que ali se passou foi um risco que acabou mal, parecido com tantos outros que acabaram bem, dos quais ninguém fala. Infelizmente, morreram seis jovens. Infelizmente numa sociedade que permite que a sensatez também morra, todos os dias, nas praxes e no tratamento posterior das situações. Já era mais do que hora do assunto estar devidamente orientado e livre de especulações. Enfim...

    Um beijinho para si. Boa escolha os seus textos, especialmente o do Ferreira Fernandes. Diz sempre tanto em meia dúzia de linhas...

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    1. Estamos de acordo, CF.
      Gosto de ler Ferreira Fernandes, sim. E aprende-se tanto a ler os outros...
      E há por aí, hoje, muitos meninos demasiado cheios de si, que deveriam escrever menos e ler mais. Mas isso é outra história. Ou talvez até tenha uma relação com esta. Mas fica para outra vez.

      Beijinho para si também, CF!

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  2. Praxes, já lá vamos.

    Dos textos que li sobre o tema, sendo todos de primeira água, muito bem escritos, saliento o de José Pacheco Pereira, «A abjecção das praxes».
    Mais acutilante, mais duro, mais terra-a-terra.
    Ferreira Fernandes, sempre bem, mais irónico e 'sofisticado'. Muito bom também.

    As praxes tiveram origem na Universidade de Coimbra, onde as mesmas aconteciam sem excessos, sem magoar ninguém. Existiam regras.
    Como sabemos, a crise académica de 1969 conduziu a uma greve generalizada aos exames e ao Luto Académico, e as praxes foram suspensas.

    A praxe não era praticada na generalidade das escolas superiores, onde os estudantes democratas a consideravam alienante.

    Muito há para dizer sobre este 'fenómeno'.
    De há poucos anos a esta parte, as praxes têm vindo a ser transformadas em formas de coação psicológica. O que é muito grave.

    Uma coisa é certa, como a Isabel diz, somos todos de certo modo responsáveis.

    Beijinho e boa semana.

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    1. Eu não gosto nada de Pacheco Pereira, mas tenho imparcialidade suficiente par reconhecer que este seu texto é muito bom. Prefiro, no entanto, o estilo de Ferreira Fernandes.

      Quanto às praxes, elas poderão ter a ver com a tradição de Coimbra, tal como aquele traje horroroso,mas de forma generalizada, não fazem, julgo eu, qualquer sentido.
      De resto, quando eu andei na Faculdade não havia nada disso (felizmente!), nem praxes, nem trajes, nem bençãos das fitas.
      E posso garantir-lhe que não me fez falta nenhuma....

      Obrigada. Boa semana também para si. Beijinho

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  3. A cultura do exame, sim. E a ausência de qualquer pensamento crítico.

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    1. Nós que sabemos muito bem disto, temos de ser os primeiros a tentar contrariar a tendência. ;)

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