quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Desapego

 
Havia dias em que pensava que tinha uma alma errante e que por isso nunca gostara que nada lhe parecesse definitivo. Nunca quisera comprar uma casa, não gostava de repetir todos os dias  os mesmos gestos e  caminhos, nunca fora de juras de amor eterno ou de ostentar sentimentos de posse, nem sentira necessidade de assumir amores perante os olhos do mundo, que os compromissos e os afectos fazem-se portas e corações adentro, no secretismo de duas vontades em sintonia, alheadas do resto.
E, no entanto, ligava-se fortemente às pessoas e aos lugares, que eram as âncoras de que precisava para se equilibrar e ser feliz, como se vivesse em aparente e constante contradição entre a tranquilidade de ir escolhendo a cada passo o rumo a seguir, em quase total liberdade, e a entrega insensata aos desejos mais imoderados e às mais caprichosas e esfusiantes paixões, entre o prazer supremo dos instantes perfeitos e a agonia de nem sempre poder ter o que mais queria.
Era como aquele amor tão louco  quanto antigo, todo imprevisto e improviso, que parecia ora apagar-se ora reacender-se, do qual já pouco mais sobrava do que lembranças, que lhe vinham nos dias em que o seu lado mais romântico lhe fazia ter de novo  vontade de adormecer nos seus braços, apesar de saber que agora já pouco mais tinham para dizer que banalidades; e então chegavam em turbilhão  saudades dos beijos lentos  e molhados que  acendiam os corpos enlaçados entre lençóis, e vontades e risos e gemidos confundidos, e uma mão grande e quente correndo pela sua pele nua;  e logo de seguida a realidade da cama demasiado grande, toda quase só ausência de colo e de aconchego. E queria voltar às horas silenciosas em que o amor redimia todos os males, numa emoção que parecia sempre a mesma e nunca repetida, presos  nos olhos um do outro, de onde conseguiam ver o mundo inteiro; e só encontrava o silêncio e o vazio que lhe preenchia o peito e lhe dilacerava a vida e em certos dias lhe ocupava o tempo de existir; e a distância que os separava tornava-se ainda  maior e tudo parecia irremediavelmente perdido.
Perguntava-se  qual o sentido de persistir  no que não era senão a nostalgia  de um passado feliz  e infeliz, feito de afecto e de mágoa, de arrojo e de arrependimento, que era ao mesmo tempo proximidade  e lonjura, desejo e recordação, querer ainda e já não querer, vagueando entre o desnorte e o susto de uma vida nova que irrompia e o que sobrava dos amores levados pelos estragos dos anos, na impossibilidade de  recuperar uma intimidade perdida.
Mas como separar-se de um laço tão fundo e tão forte e por que razão ter de escolher entre a amargura de partir de vez e o desejo de ficar ainda um pouco mais, se há tantas formas de amor, mesmo quando se sabe que o tempo e a vida são sempre para diante...
 
(Fotografia de Paulo Abreu e Lima)

2 comentários:

  1. Isabel, este é daqueles textos que me remetem para um estado de reflexão e, não sei bem porquê, fico como que impedido de dizer o que quer que seja.

    Será normal esta minha reação?

    Seja como fôr, o facto de ter lido constitui em mim um valor acrescentado.

    Cá está, quem lê ... aprende.

    Beijinho

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    1. Não faço qualquer ideia do que é normal e do que não é.
      Mas se leu e gostou, ainda bem. Também gostei de os escrever, nessa mistura complexa de vício, prazer e necessidade.

      Beijinho

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