sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Praga(s) moderna(s)


Por mera casualidade, encontrei ontem este texto, que me pareceu no mínimo curioso. Diz isto:

Nos Estados Unidos, pelo menos 9% das crianças em idade escolar foram diagnosticadas com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), e estão sendo tratadas com medicamentos. Na França, a percentagem de crianças diagnosticadas e medicadas para o TDAH é inferior a 0,5%. Como é que a epidemia de TDAH, que tornou-se firmemente estabelecida nos Estados Unidos, foi quase completamente desconsiderada com relação a crianças na França?
TDAH é um transtorno biológico-neurológico? Surpreendentemente, a resposta a esta pergunta depende do fato de você morar na França ou nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, os psiquiatras pediátricos consideram o TDAH como um distúrbio biológico, com causas biológicas. O tratamento de escolha também é biológico – medicamentos estimulantes psíquicos, tais como Ritalina e Adderall.
Os psiquiatras infantis franceses, por outro lado, vêem o TDAH como uma condição médica que tem causas psico-sociais e situacionais. Em vez de tratar os problemas de concentração e de comportamento com drogas, os médicos franceses preferem avaliar o problema subjacente que está causando o sofrimento da criança; não o cérebro da criança, mas o contexto social da criança. Eles, então, optam por tratar o problema do contexto social subjacente com psicoterapia ou aconselhamento familiar. Esta é uma maneira muito diferente de ver as coisas, comparada à tendência americana de atribuir todos os sintomas de uma disfunção biológica a um desequilíbrio químico no cérebro da criança.
Os psiquiatras infantis franceses não usam o mesmo sistema de classificação de problemas emocionais infantis utilizado pelos psiquiatras americanos. Eles não usam o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou DSM. De acordo com o sociólogo Manuel Vallee, a Federação Francesa de Psiquiatria desenvolveu um sistema de classificação alternativa, como uma resistência à influência do DSM-3. Esta alternativa foi a CFTMEA (Classification Française des Troubles Mentaux de L’Enfant et de L’Adolescent), lançado pela primeira vez em 1983, e atualizado em 1988 e 2000. O foco do CFTMEA está em identificar e tratar as causas psicossociais subjacentes aos sintomas das crianças, e não em encontrar os melhores bandaids farmacológicos para mascarar os sintomas.
Na medida em que os médicos franceses são bem sucedidos em encontrar e reparar o que estava errado no contexto social da criança, menos crianças se enquadram no diagnóstico de TDAH. Além disso, a definição de TDAH não é tão ampla quanto no sistema americano, que na minha opinião, tende a “patologizar” muito do que seria um comportamento normal da infância. O DSM não considera causas subjacentes. Dessa forma, leva os médicos a diagnosticarem como TDAH um número muito maior de crianças sintomáticas, e também os incentiva a tratar as crianças com produtos farmacêuticos.
A abordagem psico-social holística francesa também permite considerar causas nutricionais para sintomas do TDAH, especificamente o fato de o comportamento de algumas crianças se agravar após a ingestão de alimentos com corantes, certos conservantes, e / ou alérgenos. Os médicos que trabalham com crianças com problemas, para não mencionar os pais de muitas crianças com TDAH, estão bem conscientes de que as intervenções dietéticas às vezes podem ajudar. Nos Estados Unidos, o foco estrito no tratamento farmacológico do TDAH, no entanto, incentiva os médicos a ignorarem a influência dos fatores dietéticos sobre o comportamento das crianças.
E depois, claro, há muitas diferentes filosofias de educação infantil nos Estados Unidos e na França. Estas filosofias divergentes poderiam explicar por que as crianças francesas são geralmente mais bem comportadas do que as americanas. Pamela Druckerman destaca os estilos parentais divergentes em seu recente livro, Bringing up Bébé. Acredito que suas idéias são relevantes para a discussão, por que o número de crianças francesas diagnosticadas com TDAH, em nada parecem com os números que estamos vendo nos Estados Unidos.
A partir do momento que seus filhos nascem, os pais franceses oferecem um firme cadre - que significa “matriz” ou “estrutura”. Não é permitido, por exemplo, que as crianças tomem um lanche quando quiserem. As refeições são em quatro momentos específicos do dia. Crianças francesas aprendem a esperar pacientemente pelas refeições, em vez de comer salgadinhos, sempre que lhes apetecer. Os bebês franceses também se adequam aos limites estabelecidos pelos pais. Pais franceses deixam seus bebês chorando se não dormirem durante a noite, com a idade de quatro meses.
Os pais franceses, destaca Druckerman, amam seus filhos tanto quanto os pais americanos. Eles os levam às aulas de piano, à prática esportiva, e os incentivam a tirar o máximo de seus talentos. Mas os pais franceses têm uma filosofia diferente de disciplina. Limites aplicados de forma coerente, na visão francesa, fazem as crianças se sentirem seguras e protegidas. Limites claros, eles acreditam, fazem a criança se sentir mais feliz e mais segura, algo que é congruente com a minha própria experiência, como terapeuta e como mãe. Finalmente, os pais franceses acreditam que ouvir a palavra “não” resgata as crianças da “tirania de seus próprios desejos”. E a palmada, quando usada criteriosamente, não é considerada abuso na França.
Como terapeuta que trabalha com as crianças, faz todo o sentido para mim que as crianças francesas não precisem de medicamentos para controlar o seu comportamento, porque aprendem o auto-controle no início de suas vidas. As crianças crescem em famílias em que as regras são bem compreendidas, e a hierarquia familiar é clara e firme. Em famílias francesas, como descreve Druckerman, os pais estão firmemente no comando de seus filhos, enquanto que no estilo de família americana, a situação é muitas vezes o inverso.
 
O artigo, que parece que já tem dois anos, foi originalmente publicado por Marilyn Wedge na revista "Psychology Today", e esta é, como se pode perceber, uma tradução brasileira.
Ora, não sendo especialista da área, não estou em condições de avaliar a veracidade e o rigor científico do que aqui se diz.
Parece-me, no entanto, pelo que vou observando, que há um número anormalmente crescente e  quase excessivo de crianças e adolescentes diagnosticados com "Défice de Atenção e Hiperactividade" que, por isso, são todos medicados com Ritalina. E então é vê-los nas salas de aula, aos "ritalínicos", quais zombies, num estado de apatia e aparvalhamento quase completos, que chega a ser confrangedor em alguns casos.
Quando os vejo assim, claramente afectados pela medicação, pergunto-me muitas vezes se não terá havido precipitação ou subjectividade na avaliação, e se não haverá outro caminho. Porque a Ritalina, mesmo para mim, que não percebo nada do assunto, não me parece ser de todo a solução.

2 comentários:

  1. As duas diferentes abordagens deixam-nos perplexos e só nos revelam o quanto neste campo está por fazer. Sem embargo, a "escola norte-americana", classificando a origem do TDAH de ordem biológica, remete para o fármaco o silenciamento imediato do transtorno (com danos colaterais ainda por identificar, que vão das psicoses a efeitos ainda mais graves). A francesa, identificando as causas no âmbito psico-social, mas não descartando a biológica (cf uso menor de ritalina), parece alcançar resultados mais duradouros e menos intrusivos. Psiquiatria ou psicoterapia, eis a questão. Num sensato equilíbrio pode estar a resposta. Assunto muito pertinente.

    Beijinho :)

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    1. O assunto é muito pertinente, sem dúvida, e para mim que observo todos os dias os efeitos nefastos do uso (abusivo?) da Ritalina é também de extrema actualidade.
      Tendo a considerar, um pouco à semelhança do que diz o artigo, que o aumento do númerocde casos diagnosticados com TDAH terá muito a ver com uma educação caracterizada pela ausência de regras e limites claros, mas não sei até que ponto esta não é uma visão demasiado "impressionista".
      Provavelmente, como diz, a resposta passará por um sensato equilíbrio entre psicoterapia e psiquiatria. O equilíbrio faz milagres. Quase sempre... ;)

      Beijinho :)

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