quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

O adeus a um ano difícil

O ano que acaba amanhã ficará para sempre marcado nas nossas vidas. E não pelos melhores motivos. Para a maioria, 2020  terá sido diferente e bastante mais conturbado que todos os anteriores, com todas as readaptações e novos hábitos que tivemos de criar à força. Por isso, este será sempre o ano da expectativa, do medo e da perplexidade, o ano dos sorrisos escondidos, da falta de abraços e de viagens, da solidão e da incerteza, dos dias em que a simples possibilidade de ir à rua parecia o melhor destino, do teletrabalho, do confinamento e do recolher obrigatório. 
E, se é verdade que em tudo se pode também encontrar um lado positivo, se aprendemos a relativizar e apreciar o que antes não nos parecia ter muito valor, também é certo que este ano não deixa saudades e que nunca quisemos tanto apressar-lhe o fim.
O Ano Novo, esse dia 1 que é apenas só mais um dia mas que simboliza um tempo novo, a possibilidade de mudar de rumo e de fazer mais e melhor, vem pois inevitavelmente carregado de boas expectativas, de projectos, de resoluções e de desejos. E, apesar da incerteza que também encerra, subsiste sempre a esperança de que seja bem melhor. 
Desta vez, tudo isso ganha uma nova dimensão e todos ansiamos mais ou menos o mesmo: saúde, naturalmente, e um  rápido regresso à "vida normal". 
Bom Ano de 2021 para todos!..

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Quando só o amor importa


Quiero verte cuando haya terminado todo
Nada vale el oro que me puedan dar si no estás 

Prométeme que todo será igual 
que no habrá sillas vacías en nochebuena 
Sé que este año se ha portado mal 
pero yo sigo esperando verte en la cena
 bajo el árbol o en calcetín
No hay regalo parecido a ti

Quiero verte cuando haya terminado todo 
nada vale el oro que me puedan dar si no estás aquí

                                                                                            (Flavio)

Esta é a canção de Natal ("villancico", em espanhol) que ouço sem parar por estes dias, e que traduz muito claramente o sentimento e a emoção que nos marcam neste ano tão peculiar. Talvez, apesar da loucura que se tem vivido nos lugares mais comerciais na última semana, - igual à de sempre -, no momento de sentirmos a falta de alguns abraços e de alguns rituais de proximidade que tínhamos como certos, possamos dar-nos conta que não há, afinal, nada maior nem mais bonito do que o amor, que é o que nos une, o que nos fortalece, o que faz a vida valer a pena.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Sons de outros tempos


Eu, que já sou muito antiga, lembro-me do tempo em que havia uma outra Lisboa, com muitas lojas,  cheiros e sons que, com os anos, foram desaparecendo.
Uma manhã destas, fui porém surpreendida com o som  característico do amolador. Era uma figura meio misteriosa e até um pouco sinistra, pelo menos para os meus olhos infantis, um vendedor ambulante como havia tantos naquela altura, que percorria as ruas com uma pequena carripana que servia para transportar os seus utensílios de trabalho e que era, também, o balcão improvisado da sua "loja". Afiava facas, arranjava tesouras e outros objectos cortantes, e também consertava os chapéus de chuva que tinham ficado com as varetas tortas, ou partidas, por alguma ventania mais forte. Não sei se esse facto explica alguma coisa, pois dizia-se, até, que a sua chegada anunciava a chuva. Mas a sua características mais notável era o som de uma gaita de beiços com o qual sempre se fazia anunciar. E essa música, de tão repetida, ficou para sempre na minha cabeça. 
Por isso, quando outro dia a voltei a ouvir, nem precisei de ir à janela para saber que um amolador voltara à minha rua, e para me sentir, por instantes, de regresso a uma "Lisboa de outras eras", do tempo em que havia pregões pelas ruas, lojas como o "Val do Rio" e em que o padeiro e o leiteiro vinham de porta de em porta, todas as manhãs.

domingo, 13 de dezembro de 2020

A vida entre parênteses

Sem cinema, sem concertos, sem viagens, sem jantares de amigos, sem abraços apertados, sem beijos e sem mimos, sem a presença e a proximidade dos que nos são mais especiais, sem um Natal e Ano Novo como os de antes, sem quase tudo o que sempre tivemos, 2020 ficará para sempre como ano em que a nossa vida mudou e em que o que nos parecia natural e inquestionável ficou num imenso parênteses. Tivemos de reinventar-nos, de aprender a viver de outra maneira e a valorizar tantos detalhes que nos pareciam insignificantes, de adaptar-nos a novas realidades, feitas de cautelas, de máscaras, de desinfecções e de distanciamentos vários, enquanto esperamos por dias melhores, que queremos que voltem depressa, e vamos fazendo projectos, grandes ou pequenos, para quando tudo isto tiver enfim passado, e desejamos que 2021 venha carregadinho de boas novidades...

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Segredos de Lisboa (II): Tapada das Necessidades

 


Situado numa zona um pouco menos turística, a Tapada das Necessidades é um daqueles locais mais ou menos escondidos de Lisboa, que vale a pena visitar.
Contígua ao Palácio das Necessidades, que é actualmente sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a Tapada, aberta ao público, está a cargo da Câmara Municipal de Lisboa. São dez hectares cheios de árvores exóticas, caminhos e lagos, uma estufa circular, algumas edificações de vários estilos e épocas, patos, pavões, galos e galinhas.  É como se, de repente, no meio de cidade, pudéssemos sentir-nos no campo, ou pelo menos mais perto da natureza em todo o seu esplendor. 
Data do reinado de D. João V e parece  que durante o século XIX, aqui tiveram lugar os casamentos de D. Maria II, D. Pedro V e D. Carlos I. E apesar de ser um espaço que poderia sem dúvida estar  um pouco mais bem conservado, o ambiente de sombra e de silêncio, faz desta Tapada mais um dos oásis da cidade, desconhecido da grande maioria dos lisboetas e dos que, não tendo nascido aqui, fizeram de Lisboa sua casa e gostam dela como se lhe pertencessem também.
Pergunto-me por que razão preferem as pessoas, sobretudo nos fins de semana de  Outono e Inverno, acotovelar-se em centros comerciais a abarrotar, em vez de usufruir da enorme quantidade de espaços verdes, muito mais saudáveis e arejados, onde se podem verdadeiramente "desligar" e sentir em paz, dos quais a Tapada das Necessidades é apenas um de muitos exemplos, com o valor acrescentado de uma magnífica vista para o Tejo,  a ponte 25 de Abril e o Cristo-Rei, a lembrar-nos a cada instante que isto é Lisboa, com o seu magnetismo  tão particular e enfeitiçante.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Faltas de aqui e agora

O tempo tinha mudado muita coisa. A frescura da juventude dera lugar à maturidade com rugas à volta dos olhos  e a todos os detalhes, segredos, defeitos e qualidades um do outro, que já conheciam de cor. Havia tranquilidade onde antes tudo era inquietação, sofrimento, paixão desenfreada, ou medo de se perder definitivamente nas voltas do caminho. Para trás tinham ficado mágoas e amuos, lágrimas e tristezas, desconsolo e desacertos. Agora sobrava a cumplicidade de quem se tem e se quer uma vida inteira, a certeza de que, por muito que aquele fosse um amor não convencional, havia qualquer coisa que não podia compreender-se nem explicar-se e que nem a rotina e o passar dos anos haviam podido apagar. 

Tinham crescido juntos, aprendido devagar o que  importa e o que faz falta, aproveitando o que a vida traz de bom, assumindo vontades, sem se escusar nunca ao prazer. Também houvera as vezes em tudo parecia dizer que não, em que tinham hesitado entre ficar e partir, entre o prazer e a dor, entre tudo ou nada, questionando o sentido que fazia continuar assim. Mas logo percebiam que aquele amor, por mais antigo que fosse, era uma inevitabilidade das que nos marcam para sempre e que devem aceitar-se como nos chegam, viver-se sem limites nem pressas, entender-se  como uma benção sem fim. E era então que lhes nascia no peito a vontade de se apertarem com força nos braços um do outro, de se olharem no fundo dos olhos, e de se dizerem, sem palavras, a falta que sentiam. 

Queriam-se sem precisar um do outro, às vezes não, às vezes sim, de maneira insensata e desmedida, mas no fundo sabiam que se tinham e isso bastava para os sossegar, redimir todos os males e fazer felizes.

E só quando um bicho mau os obrigou a separa-se deveras, puderam perceber como era resistente o que os unia, imune  às mais variadas adversidades. E que, por mais que dentro das suas cabeças soassem muitas vezes canções de desamor, em momentos de nostalgia e de desânimo, era agora a falta que  sentiam um do outro que os fazia sentir na pele aquela canção que dizia "y entre sobras y sobras me faltas", porque por muita coisa que tivessem, era um do outro que mais necessitavam, e daquela presença com sabor a paraíso que estava acima de tudo, e era força, alento, mundo inteiro, razão de existir.

domingo, 29 de novembro de 2020

Um Advento invulgar

Começam hoje as quatro semanas que antecedem o Natal. Tempo de preparação da festa que está por vir, o Advento é um tempo de esperança, de recolhimento e de espiritualidade por excelência, sobretudo para quem é crente. 

Neste ano em que tudo é insólito e distinto, em que o Natal será muito diferente do de outros anos, tal como já aconteceu com a Páscoa, pode ser que o recolhimento a que fomos "forçados" traga um pouco mais de sobriedade a estas celebrações, as torne outra vez mais emotivas e espirituais, nos faça esquecer o lado superficial e frívolo das compras desenfreadas e da fuçanguice e azáfama parvas que tanto marcavam estes dias, e nos permita centrarmo-nos no que é verdadeiramente essencial: o afecto e a companhia de todos aqueles de quem gostamos e que também gostam de nós.

Agora que estamos mais tempo em casa por força das circunstâncias, agora que o mundo se tornou mais silencioso, vamos poder enfim virar-nos para dentro e viver  a plenitude do que o Natal significa, e que é somente simplicidade e amor. 

E porque o espírito do Natal é apenas isso, deixar de lado o  consumo e os gestos maquinais e pensar que o amor é o melhor presente que se pode dar a quem trazemos no coração. Porque é o que há de mais forte e mais bonito. Porque pode tudo. E porque é o que mais importa.

domingo, 22 de novembro de 2020

Segredos de Lisboa (I): Miradouro do Monte Agudo



Vejo-o todos os dias da minha janela, como um oásis verde no ponto mais longínquo que a minha vista pode alcançar. Hoje, fiz ao contrário: o passeio de Domingo de manhã levou-me até lá, e dali pude ver, ao longe, a minha janela.
O Miradouro do Monte Agudo é um daqueles lugares meio secretos de Lisboa, conhecido quase só por quem vive perto. Situado entre os Anjos e a Penha de França, data dos anos 50 e é um local sossegado e silencioso, que parece suspenso sobre a cidade e inclui um pequeno parque florestal, uma esplanada/café, uma pérgula com bancos de madeira e o habitual mapa da cidade em azulejo.
E, se não fosse o número considerável de pessoas que faz dele um ponto de encontro de cães, e naquele despropósito e falta de civismo tão próprio da esmagadora maioria dos seus donos os solta e deixa correr desenfreadamente e lutar entre si, seria uma boa alternativa ao Miradouro da  Senhora do Monte, não muito distante, mas que, sendo o meu preferido, com os anos se foi fazendo na verdade demasiado turístico. É, na mesma, um belíssimo refúgio de paz, local meio secreto, a convidar ao recato e à introspecção. 
E sabe muito bem, agora que quase não podemos sair daqui, encontrar lugares assim, tranquilos e acolhedores, um pouco alheios ao que nos vem atormentando os dias e onde podemos enfim sonhar com outros mundos.

domingo, 15 de novembro de 2020

Do Recolher Obrigatório


Vivemos, todos, cansados da pandemia e ávidos do regresso a uma normalidade que tarda em chegar. Neste primeiro fim de semana de recolher obrigatório a partir das treze horas, pude verificar essa ânsia de voltar à vida de antes e a sofreguidão de tentar aproveitar a liberdade possível, fazendo numa manhã, ou em duas, o que habitualmente se estende por dois dias inteiros.
No primeiro dia, não saí de casa, obediente e bem comportada. Mas também porque  não me fazia sentido ir para a rua só porque sim; e porque dormir até mais tarde, ao fim de semana, é um dos meus grandes prazeres. Só que aquilo que sabemos não poder fazer é sempre o que nos apetece mais. Por isso, hoje, fiz como toda a gente, decidida a aproveitar a rua enquanto era tempo. E pude testemunhar, ao vivo e a cores, o que já imaginava: Lisboa inteira (ou quase) enchia todas as esplanadas por onde passei; havia filas à porta dos supermercados, a fazer lembrar o primeiro confinamento; muita gente a fazer desporto; muitos outros a passear as crianças; anúncios publicitários a ser filmados; no Villaret corria a gravação do Programa de Ricardo Araújo Pereira. Até com a Ministra da Saúde me cruzei (juro!).
Mas, de tudo o que vi, nessa mistura entre o desespero e a festa, o que mais me impressionou foi o ambiente dentro da Versailles, com o balcão completamente cheio de gente que quase se atropelava  para ser atendida, numa voracidade a que só se costuma assistir na véspera das Festas, e gastando quantias mais ou menos exorbitantes em bolos e doces "para levar".
Podem as últimas medidas tomadas para deter a pandemia ser absurdas, discutíveis, ou ineficazes. Do que eu tenho a certeza é que, depois de tudo isto, o número de obesos vai certamente triplicar.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

As séries da Netflix

Resisti à Netflix durante muito tempo. Porque vejo pouca televisão, porque adoro cinema e não  me sabem da mesma maneira os filmes vistos em casa; porque me parecia absurdo acrescentar mais uma despesa fixa mensal (por mais pequena que fosse) a um rol que já considerava demasiado extenso. Enfim, tudo era um pouco pretexto para me manter inflexível. Mesmo se havia coisas que me passavam um pouco ao lado. Ouvia ahs! e ohs! exclamativos a propósito de "A Casa de Papel" de que conhecia pouco mais do que o nome.

Depois, veio a pandemia que abalou tantas das nossas convicções. E pronto: rendi-me, enfim, a princípio só à experiência. Mas logo a coisa se foi fazendo definitiva. Comecei pela "Casa de Papel", claro está; e vi as quatro temporadas de seguida. A seguir vieram outras três séries espanholas, porque gosto muito de acompanhar os diálogos sem ter que ler legendas (quase sempre de qualidade duvidosa) e porque também aproveito para aprender palavras e expressões e manter, assim, contacto com a língua.

Entretanto, entre muitas outras que me vão sugerindo, ouvi falar da recentíssima  "Emily in Paris" (estreada na Netflix no início de Outubro deste ano), a série que tinha criado polémica pelo facto de os franceses não se reverem na imagem que deles é dada e acharem que quem a escreveu desconhece em absoluto a cultura francesa.

Tenho estado a segui-la e, realmente, parece-me que têm razão, apesar de ir apenas sensivelmente a meio (vi quatro ou cinco dos dez episódios). Não fossem as belíssimas imagens de Paris, que ainda que contribuam sempre para aumentar um pouco mais as minhas saudades, também as mitigam de algum modo, e a série estaria boa para o caixote do lixo.

É uma história "levezinha" e pretensamente divertida (?) com laivos de comédia romântica e escrita pelo criador de "O Sexo e a Cidade", o que me parece que já diz muito. Têm razão de queixa os franceses, creio, já que esta produção não passa de uma "americanada", que transmite uma versão demasiado superficial, retrógrada e estereotipada dos franceses enquanto povo, e da sua cultura, que os autores da série, claramente, desconhecem em absoluto.

A fama de arrogantes e pouco hospitaleiros para quem vem de fora poderá ter um fundo de verdade que faria sentido há algumas décadas, mas que já não corresponde, de modo algum,  à realidade actual.

Esta é pois, na minha opinião, uma série que não vale a pena ver, nem sequer para "passar o tempo". É que, na verdade, há uma infinidade de coisas bem melhores para ver, ou para fazer...

domingo, 8 de novembro de 2020

Quando só nos resta esperar

Sei que te faço falta. Falta-te a minha mão a segurar a tua, a minha voz a cantar-te baixinho, desafinada; faltam-te os nossos abraços e mimos, o conforto de estarmos juntas, sem precisar de muitas palavras. E mesmo estando certa de  que és suficientemente forte para passar por isto e sair vencedora uma vez mais, gostava de poder estar contigo agora. Não devias nem merecias ter que passar por isto sozinha, ainda que o sofrimento seja sempre silencioso e solitário.

Mas, no fundo do teu coração, sei que sabes que não te abandonei, que mesmo à distância te trago sempre comigo, que também espero que isto não passe de um susto, como se a vida, volta não volta, tivesse de nos pôr à prova. E nós sabemos que vamos aguentar. E que vai passar. E voltar a ser bom.

Esta noite sonhei contigo. Tu também me fazes falta. Falta-me a tua calma, a serenidade dos teus olhos, que me fazem crer que tudo parece estar certo e que a vida deve encarar-se sempre com alegria e boa disposição. E enquanto me debato entre o que não me parece justo e a gratidão por apesar de tudo ser só assim,  - quando há tanta gente que está tão pior que nós, - espero o dia de podermos estar juntas outra vez, e abraçarmo-nos, e dizermo-nos com os olhos o quanto nos queremos, vingando-nos de todos os dias, meses e horas em que não pudemos ver-nos como queríamos. 

Para já, até que chegue esse dia, não podemos fazer mais nada a não ser esperar, viver um momento de cada vez;  e acreditar.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Um belíssimo auto-retrato


Aznavour não está entre os meus cantores franceses preferidos, como já tive ocasião de dizer aqui. Goste-se muito, pouco, ou assim assim, não deixa contudo de ser um dos nomes incontornáveis da música. Da francesa, antes de mais, mas da música tout court, também. Como Sinatra, Iglesias e tantos outros.
Por estes dias, está nos cinemas um filme /documentário que tem já um ano (é de Novembro de 2019), Le regard de Charles ("Aznavour por Charles", na versão portuguesa) e que despertou a minha atenção. Em boa hora o fui ver.
Marc di Domenico recupera e  apresenta tudo o que Aznavour filmou em 8 e 16mm, entre 1948 e 1982, que é grande parte da sua vida. Juntou-lhe palavras, textos, entrevistas suas, na voz de Romain Duris e as inesquecíveis canções de Aznavour, na sua voz de crooner. O resultado é um magnífico auto-retrato, simultaneamente belo, nostálgico e tocante, que nos leva a conhecê-lo melhor e a acompanhá-lo por mil lugares na sua sede de conhecer o mundo, nas suas raízes arménias, na ascensão no mundo da canção, nos seus laços familiares, artísticos, de amizade, pelas quais passam Edith Piaf, Dalida, Lino Ventura, Truffaut, Anouk Aimée e tantos outros.
São imagens pessoais, filmadas ao longo dos anos, e arquivos televisivos inteligentemente montados por Domenico que nos dão um novo olhar sobre este artista e o seu lado mais íntimo. É, antes de mais, o seu olhar sobre si mesmo, que nos oferece postumamente. "Vous m'avez vu, mais ce que vous ne savez pas, c'est que moi aussi, je vou ai vus"... ou "Je n'ai jamais revu ces images, mais je savais qu'un jour vous les verriez" são duas frases emblemáticas, que atravessam este álbum de recordações, emotivo e comovente. 
Imperdível para quem gosta muito de Aznavour. E, para quem gosta um pouco menos, também.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Envelhecer assim

Devo estar a ficar velho. E, no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. (...) Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar os intervalos das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô me viesse fazer uma festa à cama. (...) Pensando bem (e digo isto ao espelho) não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou. 
Estas são palavras de António Lobo Antunes, no Livro de Crónicas, de 1998. 
Recordo-as agora, porque de facto penso que a maior parte das pessoas (falo por mim) não sente ter a idade que tem, e porque o que sentimos na cabeça é sempre diferente da crueza dos números. Pode a pele enrugar-se e emurchecer, pode perder-se o viço ou desaparecer no olhar o fulgor de outrora, mas não esmorece a alma, nem deixa de pulsar o coração. É por isso que se diz que a idade está mais no espírito com que se vive do que no número que consta do bilhete de identidade; e eu só posso concordar. Conheço pessoas de vinte ou trinta anos mais "velhas" que muitas outras de setenta ou oitenta. Que importa afinal a idade que temos? Nos homens e nas mulheres agradam-me muito as marcas visíveis da passagem do tempo, nas quais não vejo qualquer sinal de decrepitude, mas antes a lúcida sensatez de quem acumulou vivências múltiplas e se permite ainda as mais arrebatadas e extravagantes loucuras, sem se importar com as opiniões alheias. 
Recordo-as, também, porque tenho, muitas vezes, saudades do colo da minha mãe. Do tempo em que bastava dizer: "ó mãe!" para tudo se resolver; em  que  bastava ser embalada pelos seus braços fortes e bons para que todas as minhas dores passassem  e  os meus desgostos de menina se desvanecessem. Saudades das nossa tardes de Domingo, do seu riso e do seu bom humor, dos nossos abraços. Emociona-me e aflige-me em todas as horas de todos os dias não poder saber exactamente o que pensa e o que sente naquele seu mundo de silêncio, em que já nem pelo toque e pelos olhos nos deixam comunicar.
Recordo-as, sobretudo, nesta altura difícil para todos, mas especialmente para os que dada a fragilidade decorrente do peso dos anos e das marcas da vida, estão agora mais tristes e mais sozinhos, a sofrer calados. 
E não podemos fazer nada?

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Ganas de ti


Quando a pandemia chegou, eu estava a dias de partir para a cidade que sempre trago no coração além da minha Lisboa, onde já estive inúmeras vezes e de que nunca me canso. Pelo contrário: a cada nova visita, fica sempre uma vontade maior de regressar.
Desta vez iria sozinha, o que era uma estreia total. E apesar de preferir a companhia, imaginava como poderia ser bom para poder ficar horas nas livrarias e papelarias sem ter ninguém à minha espera, sentar-me tranquila em todas as esplanadas da Cité, do Quartier Latin ou de Saint-Germain-des-Prés a observar  as pessoas, ou demorar-me  no Jardin du Luxembourg  - o meu lugar preferido - ao entardecer, a ler, ou só a olhar.
Designada ville lumière muito apropriadamente, Paris tem esse magia tão singular que não sei se vem do brilho do sol sobre rio que se reflecte nos típicos telhados escuros, de uma certa sofisticação meio blasée, ou de uma aura boémia e artística que se mantém até hoje, mesmo que tenha perdido o fulgor de outros tempos.
Gosto de muitas cidades. Mas para além de Lisboa, que é berço, casa e colo, só em Paris e em Sevilha tenho esta estranha e boa sensação de ser uma espécie de "filha adoptiva".
Por isso, trago esta viagem que não chegou a acontecer atravessada no coração, e sonho com o fim disto tudo e com um regresso à normalidade para a fazer enfim realidade. Por isso, tenho ainda mais saudades do que habitualmente de voltar às suas ruas, praças jardins, pontes, cafés, livrarias, a todos os lugares de visita obrigatória e às novidades que sempre existem também. Porque Paris é inesgotável e tem sempre muita coisa a acontecer, em muitos domínios, para todos os gostos.
E como, para mim, as cidades têm muito em comum com as pessoas, enquanto espero o dia em que possamos voltar a ver-nos, vou trauteando mentalmente uma canção espanhola já antiga:

Quiero en tus manos abiertas buscar mi camino
Y que te sientas feliz solamente conmigo
Hoy tengo ganas de ti, hoy tengo ganas de ti
Quiero apagar en tus labios la sed de mi alma
Y descubrir el amor juntos cada mañana
Hoy tengo gans de ti, hoy tengo ganas de ti...

domingo, 25 de outubro de 2020

Enfastiamento


Há muito tempo que não leio um livro nem vejo um filme verdadeiramente empolgantes, daqueles que nos põem em causa, nos revolvem por dentro e nos deixam a pensar, ou nos apaixonam, enfeitiçam e se nos fazem inesquecíveis.
O último filme que me tocou dessa maneira foi talvez Dolor y Gloria,  de Almodóvar. Quanto aos livros, sinceramente, já não recordo o último que li de um fôlego, naquele entusiasmo bom de não conseguir parar.
E não sei se somos nós que com o tempo vamos tendo maior dificuldade em surpreender-nos e deixar-nos arrebatar, ou se é a criação que está também em crise, o que faz com que, no caso da literatura, por exemplo, mas do cinema, de igual modo, e se calhar de outras artes, se privilegie o entretenimento rápido e inconsequente e se publique muito, mas a qualidade seja em geral mais duvidosa ou difícil de alcançar. 
Acredito mais nesta segunda hipótese, hélas...

sábado, 24 de outubro de 2020

Hora de Inverno





É no dia em que muda a hora e temos de atrasar os relógios que sinto mais fortemente que o Outono está em pleno, quando na verdade há dias, ou semanas, até, que ele se vem fazendo notar. Não sei explicar, mas é como se esses sessenta minutos a mais fizessem toda a diferença, para além do óbvio que implica anoitecer e amanhecer um pouco mais cedo e da trabalheira de alterar tantos ponteiros.
E eu, que sou toda da luz e amo Primavera no seu exuberante colorido, também gosto muito do Outono e da sua doce melancolia, que faz a vida desacelerar. Gosto da alternância e da variedade das estações, dos dias compridos e claros depois da escuridão e da tristeza associadas ao Inverno, gosto da chuva que vem depois do sol, de mudar de roupas leves e frescas para outras quentes e macias, que nos protegem da aragem fria que começa a atravessar-nos a pele, sobretudo ao início ou fim do dia. E assim se vai modificando e seguindo lentamente a vida, quase sem nos apercebermos. 
Os melhores dias do Outono são os que ficam neste intervalo de tempo entre o fim das férias e o insuportável frenesim das Festas, quando tudo vai ainda fluindo devagar, as noites parecem enormes e sabe bem ficar em casa, preguiçosamente, no maior recato.  
O Outono é tempo de intimidade e de agasalho, de silêncios e de vozes baixas, de lanches no sofá e de bebidas quentes, de quietude, de afagos, abraços e aconchego, de ouvir a chuva nos vidros, de deixar-se estar. É por isso que este fim de semana  me deixo ficar mais aqui por casa, a celebrar o conforto e o sossego, até porque os tempos que vivemos também requerem recolhimento e cuidados redobrados.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Bucólica







Quem me conhece sabe como eu sou profundamente urbana e tenho tendência para preferir visitar cidades, em vez de me deleitar  a comtemplar paisagens campestres onde imperam os tons verdes e onde não "aguento" mais de dois dias seguidos sem me começar a aborrecer.  Se é natureza, então escolho a água, seja ela mar, rio, lago ou fonte, talvez por ser do signo de Peixes, ou apenas porque sim. Mas, desta vez, porque a pandemia nos obrigou a umas férias inteiramente nacionais e diferentes do habitual, lá fui enfim visitar um sítio muito falado e que andava há anos para conhecer. E rendi-me, de facto, à beleza inigualável das casas de xisto, aos caminhos pedestres por montes e vales, ao som inesperado da água a correr, ao silêncio e ao sossego dos lugares onde a vida parece de repente deter-se. É que mesmo para quem ama a agitação citadina, o sossego e o recato temporários  também podem saber muito bem e fazer-nos sentir em paz e harmonia, virando-nos um pouco mais para dentro, deixando a vida fluir tranquila e pensando que, por mais imperfeito que o mundo às vezes nos pareça, é um lugar imensamente belo e misterioso, que se nos revela e surpreende nos mais pequenos detalhes.

domingo, 11 de outubro de 2020

O fim das férias


Despeço-me da praia em Outubro, numa altura em que ela volta ao silêncio de que eu gosto e posso de novo sonhar preguiçosamente em frente ao mar, sentindo o sossego e a harmonia à minha volta. É nestas alturas que o mundo me parece perfeito, apesar de tudo.
Termino a época balnear um pouco mais tarde do que de costume, porque também a comecei em Maio, e não em Março nem Abril, como costuma ser o hábito. Amanhã é a minha "rentrée", depois de três maravilhosas semanas de férias inteiramente portuguesas, num ano muito peculiar e em tudo diferente dos outros. 
Agora, voltam as obrigações do quotidiano, os despertadores a horas demasiado matinais, os horários, as horas marcadas e tudo o que me ocupa nos dias "normais"; agora, vem o vento, o frio e a chuva, o tempo do recato e do aconchego, em que fico mais em casa, enquanto  vou pensando em voltar a ter uns dias para fazer tudo o que me apetecer. Na Primavera, talvez, se não for antes...

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Romance


"Um amor feliz não fica a dever nada à paixão. O amor é no mundo real. É muito mais arriscado. (...) Dá uma trabalheira. Mas quando funciona traz uma intimidade que não existe na paixão."
E há amores assim, vividos de muitas formas, resistentes ao tempo e às contrariedades da vida, a todas as rotinas e desgastes da passagem dos dias e dos anos, como aqueles mistérios que não se entendem nem se explicam, mas apenas se vivem pelo lado de dentro de uma intimidade partilhada; que  não se atenuam nem esmorecem mesmo que se vão modificando, que são feitos de um entendimento que não precisa de muitas palavras, de silêncios bons, de olhares cúmplices, do aconchego e do conforto de saber que apenas por se terem tudo é mais fácil e perfeito; e da certeza de que o amor é o melhor do mundo, quando nele cabe a  a felicidade que vem desse nó muito apertado, que nunca se desfaz, e enche de luz a vida inteira.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A mais inquietante Rentrée



Já foi há muitos anos, mas ainda me lembro muito bem do primeiro dia em que fui à escola. Recordo o nervosismo e a ansiedade de me ver de repente naquele mundo inteiramente novo, que eu tanto tinha ansiado e que, naquele momento, tanto temia. Havia muita gente que eu não conhecia e uma imensa algazarra de vozes, campainhas, gestos, movimentações. Lembro-me de me terem levado para uma sala onde havia muitas crianças e de não ter respondido quando chamaram o meu nome. Por vergonha. E na atrapalhação de não saber muito bem o que fazer, para onde ir, onde me abrigar. Era uma enorme sensação de desamparo.
Depois, a sala de aula, na segunda porta à esquerda do corredor do rés-do-chão, com enormes janelas para o pátio de arcadas sustentadas por grossas colunas, que durante anos foram cenário de muitas aventuras. As primeiras semanas foram, no entanto, difíceis. A verdade é que me sentia um pouco perdida e sozinha no meio de tanta gente que me era estranha. Passei-as, quase sempre, no colo da minha professora, que soube compreender o que eu sentia e procurou, com carinho e paciência, amenizar a minha dor. E, aos poucos, tornar tudo natural. 
Dessa professora, que se chamava Esmeralda, guardo até hoje uma boa, terna e nítida recordação. E a imensa gratidão de tudo quanto me deu e fez descobrir. Acho mesmo que foi por causa dessas primeiras semanas com sabor a colo e a casa, por esse afecto com que fui recebida, que escolhi ficar ligada à escola para sempre. E fazer dela a minha vida, com tudo o que nela é bom, mau, ou apenas assim-assim.
Nos anos seguintes, era sempre com o coração aos saltos que voltava à escola, na emoção de toda a novidade  por vir e com a alegria de estrear cadernos, canetas e livros a cheirar a novo e de tudo o que lhe estava associado, enquanto janela sobre o mundo e possibilidades infinitas.
Mesmo quando deixei de ser aluna e passei a ser professora, ao longo do tempo, em cada ano, o primeiro dia foi sempre um dia de nervos e de entusiasmo, já não como da primeira vez, mas com aquele nervoso miudinho que têm todos regresso e as estreias, tudo expectativa e inquietação, desafio, ilusões, vontades.
Hoje, em que pelo terceiro ano consecutivo a rentrée não significa para mim regressar à escola, apenas no trânsito notei a azáfama e o frenesim de um dia diferente (levei vinte minutos para fazer um percurso de autocarro que normalmente se faz em dez).
Estranhamente, ou talvez não, a escola não me faz falta. Seja porque com o passar dos anos nos vamos cansando de um quotidiano excessivamente exigente e pouco compensador a vários níveis, seja porque o que há de bom na escola, se diluiu, em todos os constrangimentos e limitações que de há uns anos para cá também a caracterizam e diminuem, no seu sentido, propósito, missão.
Além disso, o retorno à escola, este ano, é diferente de todos os outros, fortemente marcado pelo tempo do confinamento, pelo medo da pandemia e por umas "regras de segurança" que todos sabem ser impossíveis de aplicar na prática.
Mas, este ano,  ao contrário do que acontece para quase todos, o tempo da rentrée, para mim, significa férias. Já a partir de amanhã. 😊 

sábado, 12 de setembro de 2020

Hoje é dia de festa



Para ele - para os que lhe são mais próximos, talvez - terá sido uma decisão acertada. E, acima de tudo, benéfica. Para o resto do mundo, para o país que nunca soube merecer a sua inteligência, cultura e empenho, foi uma perda. Depois da controversa passagem pelo jornalismo, em tempos marcados pela irreverência própria da juventude, a saída do universo quase exclusivamente medíocre e mesquinho da política, trouxe-nos um Paulo Portas "comentador" - porque afinal tudo tem, também, um lado bom. 
E assim, durante todos os dias que durou o confinamento, pudemos entender melhor a pandemia em vários aspectos e detalhes, ou nas circunstâncias de cada país; agora, só aos Domingos, podemos ouvi-lo no "Global Portas" e apreciar a sua forma absolutamente clara e apaixonada de explicar o que às vezes nos parece confuso, que pode ainda ser sobre a pandemia, que marca os nossos dias e condiciona as nossas vidas, mas também, sobre o que se passa no mundo em termos políticos, económicos, culturais.
É uma opinião, claro está, mas não dada à toa, como muito se vê por aí, e antes documentada e reflectida. Outra coisa não seria de esperar. Que sorte têm os seus alunos de Mestrado da Universidade Nova, e todos os que, em diferentes universidades da Europa e do Mundo (de que a Sorbonne e a Complutense são apenas dois exemplos) podem desfrutar dos seus conhecimentos e do modo como sempre comunica, com  contagiante entusiasmo.
Com classe, humor, sensibilidade, bom gosto, eloquente como poucos, com uma inteligência muito acima da média, enérgico e decidido, Paulo Portas é uma pessoa notável, que se destaca das demais, e por  quem eu tenho profunda estima e admiração. E faz hoje 58 anos. Para ele e para a minha querida Helena Sacadura Cabral, a quem também me unem laços especiais de amizade, os meus parabéns.

(Nota: Excepcionalmente o "Global" desta semana é ao Sábado e não ao Domingo. No Telejornal da TVI. Em dia de aniversário, portanto. E, como sempre, a não perder!)

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O dia em que o mundo mudou



Já passaram 19 anos sobre aquele dia 11 de Setembro, que mudaria o mundo para sempre. Hoje, é impossível fazer referência  a este dia e mês sem lembrar o que aconteceu. E os que o viveram, como eu, não poderão esquecer, mesmo muitos anos depois, o horror e a estupefacção que nos colou às notícias todo o dia e toda a noite, e nos dias que vieram a seguir, sem acreditar nem compreender muito bem o que se passava de facto.
Todos lembramos onde estávamos e o que fazíamos no exacto momento em que recebemos a notícia. Eu estava em casa, a preparar aulas. Com a televisão ligada na RTVE, como é costume. A notícia de um "acidente" com um avião que embatera nas Torres Gémeas de Nova Iorque fez-me deixar o que estava a fazer para prestar total atenção à televisão. Depois, vi em directo o segundo avião a irromper, literalmente, pelo outro edifício - o momento da certeza de que aquilo não era apenas um terrível acidente - e mais tarde as torres a desmoronar-se. O resto é o que todos vimos e/ou sabemos, o que só conseguimos entender dias, meses, anos mais tarde.
Com o tempo, passada a dor, a emoção e o choque desses momentos de turbilhão, tudo voltou à normalidade. Mas o mundo não voltou a ser o mesmo.
E, por mais estranho que pareça, ou talvez não, por motivos diferentes, com causas e consequências muito distintas, vivemos hoje, de novo, tempos muito peculiares, que também marcarão certamente as nossas vidas.

sábado, 5 de setembro de 2020

Pureza e verdade



Flavio é a pessoa a quem pertence a magnífica voz de que já falei aqui, que me fez companhia durante todo o tempo do confinamento e que me traz totalmente rendida e enamorada nos últimos tempos, desde que a ouvi pela primeira vez.
Trata-se de um caso sério no mundo da música, acabado de surgir, que nos toca e nos prende de maneira profunda, antes de mais pela sua enorme singularidade. E que promete ainda vir  a dar muito que falar.
Com apenas vinte anos, Flavio lançou há três dias o seu segundo single, com o selo da Warner Music, mas com música e letra suas, tal como o anterior. E se, em Abril, o êxito do primeiro, Calma, em tom mais "jazzístico e urbano" (nas suas próprias palavras) já tinha sido imenso, o que dizer desta nova canção? Em dois dias, mais de meio milhão de visualizações no Youtube, número 1 em diversas plataformas digitais, trending topic durante várias horas, também na América Latina.
Yo con you mismo é uma balada absolutamente despojada, apenas com o piano e a voz, tal como o videoclip que a acompanha. Tudo só sentimento e autenticidade. E é essa simplicidade, essa "nudez", que a torna ainda mais bela e nos transmite tanto. Aqui está, pois, a prova de que importa mais a sensibilidade e a emoção do que todos os artefactos, as coreografias, ou as grandes produções.
Como diz  a mewmagazine.es"Yo con yo mismo" es lo último de Flavio. Un tema completamente desnudo. Piano y voz. Con una gran honestidad y una sencillez brutal. Una de esas canciones que están predestinadas a convertirse en un clásico y emocionar.
Segundo nos conta nas diversas entrevistas que tem dado nestes dias, a canção fala de esses momentos de "bajón" em que uma pessoa, a sós consigo, sente que ninguém a pode ajudar porque não pode entender o mesmo que ela está a sentir e que, por isso, é a si que cabe "salir adelante". Fala do que podem sentir às vezes as pessoas mais introvertidas, quando se insiste para que sejam de "certa maneira" e da riqueza do seu mundo interior. É uma canção que o define, uma espécie de "carta de apresentação", que marca o início da sua carreira e com a qual acredita que muita gente pode sentir-se identificada.
Ainda na mewmagazine.es: Flavio tiene una voz diferente. Y una forma de cantar única. "yo con yo mismo" es una apuesta por él. Sin florituras. Sin muchos añadidos. Porque no hay nada como mostrarse tal cual es y disfrutar del camino. Aunque haya que tener mucha paciencia y aprender a vivir con ella. Y el piano como guía. Como acompañante fiel de una aventura, una historia, que solo acaba de comenzar.
"Yo con yo mismo" es un cante a ese momento en el que no necesitas nada más que estar en silencio. Alejado de todo y de todos. Para encontrarte y descubrirte. Sin ruidos extraños que te alejen de tu objetivo. Es una balada para curarte y sanarte. Para acariciar esas pequeñas heridas y subsanarlas. Es una conversación pura. Un tema que solo podría haberlo cumpuesto él.
E depois, Flavio é um ser humano maravilhoso, doce e tímido, com um sorriso encantador, cheio de música e de luz, simples e vulnerável, elegante e "cercano", emotivo, genuíno, sensível, afectuoso. Tudo isto faz dele um artista e uma pessoa especial, diferente, única.
Ora ouçam! E deixem-se arrebatar...

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O prazer das compras


Pode parecer uma coisa um pouco fútil, mas há um prazer especial nisto de fazer compras, que não sei se é de facto exclusivamente feminino, ou se a ideia não passa de um mito. Neste como noutros assuntos, não me parece que seja uma questão de género, mas sobretudo de maneira de ser. Ou de estar. Ou de viver.
Não falo, é claro, de comprar compulsivamente, só porque sim, nem de casos quase patológicos de dependência, ou de exageros de qualquer tipo. Falo daquelas pequenas alegrias que podem fazer passar uma neura, ou tornar um dia mais agradável; falo das horas passadas à procura nem se sabe bem de quê, do apelo indizível daquilo que nos diz "compra-me!" quando o olhamos pela primeira vez, e de tantas outras coisas sem importância, que às vezes podem ser capazes de nos alterar o humor, ou de fazer o dia. Sem mais!

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Agora é a minha vez


Quando chega o fim de Agosto, é sempre mais ou menos assim. Os dias ficam mais curtos, a praia esvazia-se e volta ao silêncio apenas interrompido pelo som das gaivotas e das ondas a desfazer-se na areia, e por todo o lado voltam as cores e os cheiros da rentrée, entre a novidade do recomeço e nostalgia da despedida do Verão.
Esta altura do ano significa para quase toda a gente acabar as férias e retomar um quotidiano igual ao de antes, com todas as rotinas, horários e afazeres  que lhe estão associados.
Mas, num ano especialmente difícil e insólito, como este, em que até a Feira do Livro passou do seu Maio da vida toda para a época Agosto /Setembro, também eu, que em podendo gosto muito de ir contra a corrente e fazer diferente, aproveito a época em que toda a gente regressa de férias para fazer a mala e partir por aí, à descoberta de novidades. 
Assim, o fim de féria para uns pode ser o início de férias para outros. Férias no Outono? Soa muito bem!..

domingo, 30 de agosto de 2020

Escrever o seu guião


Por mais difícil que lhe pudesse parecer, às vezes tentava pôr-se noutras peles e imaginar como seriam outras vidas, que observava à sua volta. Sabia que havia aquele velho princípio da sabedoria popular, segundo o qual "só quem vive no convento é que sabe o que lá vai dentro" e gostava de acreditar na teoria de que todos os caminhos são possíveis e igualmente válidos desde que quem os escolhe se sinta bem assim.
Mas, por mais voltas que desse, não conseguia entender os que viviam na ilusão da companhia e preferiam uma solidão a dois no pavor de se enfrentar ou conhecer; os que arrastavam uma infelicidade que não era mais do que o resultado de uma escolha feita em nome próprio e de onde pareciam não querer ou não poder sair, como se a sua vida fosse uma espécie de condenação perpétua e aquele modo de vida não fosse mais que uma fatalidade à qual não podiam escapar.
Sabia que  a solidão pode às vezes ser doce ou amarga, mas acreditava, também, que grande parte do que acontece na nossa vida é apenas da responsabilidade de cada um, que nos cabe optar por ficar ou partir, retrair-se ou lançar-se  na procura de qualquer coisa mais; e gostava dessa inquieta liberdade de poder ir fazendo o caminho com tudo o que ele tinha de ousadia e de risco e da imensa satisfação de, apesar dos "erros de casting", das tristezas e alegrias, das horas boas e más, ir escrevendo a sua história, sem arrependimentos, nem remorsos, nem volta atrás.
E mesmo quando tudo parecia demasiado cinzento e sombrio, quando os dias se enchiam de silêncios e palavras por dizer, vinha a certeza de que "felizes para sempre" é uma ilusão fantasiosa que nos vem dos contos da mais remota infância, que há apenas momentos felizes aos quais se chega depois de alguns inevitáveis fracassos, mas que não há liberdade mais compensadora, nem prazer maior, que sentir-se em paz consigo e com o mundo, e poder, sempre, começar tudo outra vez. 

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Chuvas de Verão



Gosto muito de chuvas de Verão, ainda que eu seja inteiramente da luz e do sol. Mas, talvez por me afectar o calor excessivo, nada como estes dias de Verão que mais parecem de Outono, em que a temperatura baixa e a chuva mais ou menos intensa alivia e altera um pouco o nosso quotidiano. Caia miudinha ou sob a forma de forte aguaceiro, sabe bem de repente um dia diferente, o maravilhoso cheiro da terra molhada, o ruído manso da chuva, o piso escorregadio, o dia cinzento, claro escuro, quente e fresco, que é também prenúncio de Outono, como uma despedida antecipada ou  a revelação prematura de um tempo novo, de férias que terminam ou que estão prestes a começar, de mudança, de calma, de uma nostalgia boa. 

domingo, 16 de agosto de 2020

Querer(se) à distância


Nunca se tinham separado por tanto tempo. Tinha sido preciso vir aquele bicho malvado para tornar tudo tão mais difícil e estranho, impondo uma distância forçada a que tinham sido obrigados a habituar-se.
E mesmo sabendo que há aqueles raros amores que vivem do desapego e da certeza de se sentir perto estando longe, e de acreditar que é a lonjura que dá maior sentido à proximidade, havia dias em que ouvir-lhe apenas a voz já não lhe chegava, e lhe doía no corpo e na alma aquela longa ausência.
Então impacientava-se, ansiando o dia de tudo voltar à simples naturalidade de se terem quando e quanto queriam; em que pudesse realmente tê-lo de novo consigo, entregue aos seus gestos demorados e ardentes, sem que isso fosse apenas um sonho bom, que sonhava em muitas noites de angústia, desamparo, solidão.
Às vezes procurava, como sempre fizera, ver o lado bom de todas as coisas, fingir que não se passava nada, distrair-se com o que a rodeava, o espectáculo da luz do sol brilhando sobre o mar, do dia a nascer, do movimento da cidade e de todos os pequenos detalhes que a deixavam serena e maravilhada. Outras vezes deixava o coração bater descontrolado e voar sozinho, antevendo o momento de poderem enfim voltar a estar juntos. E só conseguia ver aquele colo que lhe sabia sempre a paraíso;  e sonhava poder abandonar-se no calor do seu abraço, soltar o desejo tanto tempo contido e deixar-se levar pelos mais loucos desvarios, entregando-se inteira aos caprichos da paixão enfim à solta, após a lenta agonia de querer e não poder ter. Revia na cabeça corpos nus entrelaçados, sentia todos os arrepios do seu cheiro, do toque da sua pele, do seu beijo ardente pelo corpo inteiro, daquelas mãos lindas de quem por mais esquivo e misterioso que às vezes lhe pudesse parecer, era o seu verdadeiro amor, o único capaz de lhe roubar deveras o coração.  Amar-se-iam então em total liberdade, confundindo os corpos, as vontade e os risos, deixando falar apenas os olhos e as mãos na esfuziante e deslumbrada explosão do prazer.
Enquanto pensava tudo isto, imaginava como seria bom permanecer na ilusão daquele feitiço, tão diferente da realidade quotidiana. No fundo sabia que ninguém pertence a ninguém e sentimentos de posse, ou ciúmes parvos, nunca haviam sido o seu estilo, mas resgatá-lo enfim àquele bicho que os separara durante tanto tempo era agora o que mais queria, pois sabia que não havia maior redenção que aquele amor, nem felicidade maior que a sua companhia, que valia a vida toda. Por isso, tê-lo de novo consigo seria o céu e o regresso, tão longamente esperado, do que já era quase só saudade.

sábado, 15 de agosto de 2020

Beldades que são muito mais que isso


Teria de ser um filme francês a marcar o meu regresso ao cinema pós confinamento, seis ou sete meses depois da última vez. Com as devidas seguranças, claro está.
Agora não nos podemos sentar atrás, à frente, nem ao lado de ninguém - à excepção das pessoas que nos acompanham - o que não me faz muita diferença, pois já era o que eu antes procurava, para estar  mais em sossego. E temos de estar sempre de máscara, naturalmente.
Havendo um filme de André Téchiné em cartaz, pareceu-me, pois, que tudo se conjugava para recuperar um pouco mais da antiga "normalidade". Com Catherine Deneuve, a sua actriz fétiche como protagonista, melhor ainda: aposta (quase) segura.
O filme, L'adieu  à la nuit, trata um assunto muito actual -  a radicalização religiosa, - na perspectiva do amor parental. Toda a história gira à volta da relação entre Muriel, a avó, e Alex, o neto (Kacey Mottet Klein), e de como ao descobrir que este está prestes a partir para a Síria o tenta desesperadamente "salvar", tal como todos fazemos, de certo modo, com os que amamos, quando vemos que se perdem, se enganam, ou seguem um "mau caminho" qualquer.
É um filme um pouco melancólico e até de algum modo perturbador. Mas Catherine Deneuve personifica magnificamente a inquietação e o desespero diante do fanatismo, e a perplexidade perante a impenetrabilidade de uma juventude que vive a angústia de um futuro incerto e  que se alimenta de solidão diante de um computador. É ela que faz o filme valer a pena, porque, afinal, uma diva é sempre uma diva.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Trovante,antes, agora e sempre


Faz hoje 44 anos que, em Sagres, tudo começou. E, apesar de o grupo não existir enquanto tal há mais de vinte anos, (desde 1991), marcou uma época e muitas vidas - a minha, desde logo. 
Tanto tempo depois, ainda se ouve com prazer e traz consigo muito boas recordações, das que se guardam para sempre e não podem esquecer-se nunca, porque foram (são) verdadeiramente especiais.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Vantagens do teletrabalho


Veio com a pandemia e não se percebeu ainda se é apenas passageiro, em consequência das actuais circunstâncias, ou se veio para ficar, impondo novas maneiras de funcionar a adoptar para sempre.
E, apesar das dificuldades iniciais de ligação e de adaptação a novos métodos de trabalho por via remota, devo dizer que sou uma das suas mais fervorosas defensoras.
É verdade que não pode aplicar-se a todos os sectores e actividades, que se perde o lado da socialização, tornando-se assim mais individualizado e até de certo modo solitário, mas permite de igual modo uma melhor gestão do tempo, uma maior calma por se evitar o stress do trânsito, dos transportes e de todas as deslocações associadas ao trabalho presencial, as conversas que não interessam nada e só servem para perder tempo, o desgaste psicológico de todas as rotinas do ir e do voltar e um ambiente mais ou menos desagradável, consoante os casos e as pessoas.
Falo apenas por mim. O trabalho que faço não necessita de modo algum de ser feito presencialmente. Agora a funcionar em versão metade/metade, alternando uma semana presencial e uma semana em teletrabalho, posso afirmar com certeza absoluta que faço exactamente o mesmo em casa, mas que posso gerir melhor os horários e as tarefas, que tenho mais sossego e mais vontade, o que acaba por resultar, seguramente, em maior produtividade. Por isso gostaria muito que, mesmo quando isto tudo acabar, pudesse continuar a ser assim.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

A justa medida




Em todas as circunstâncias e situações é difícil encontrar o equilíbrio entre o que está certo e errado, o que é insuficiente ou excessivo, o que deve ser dito ou calado, feito ou desfeito, numa infinidade de caminhos e possibilidades, que implicam escolhas e decisões e as suas respectivas consequências.
O tema é complexo e delicado. O impacto da proibição das visitas de amigos e familiares a lares de idosos levanta questões de difícil resolução. Se é verdade que se evita, por um lado, a propagação do contágio numa população especialmente vulnerável, há que ter em conta, também, as fragilidades de todo o tipo inerentes a esta faixa etária, o que implica não apenas as satisfação das necessidades mais básicas, de higiene, alimentação e cuidados de saúde, mas tudo o que tem a ver com o bem-estar, a dignidade e os afectos, que não é menos importante. Porque é em situações de extrema debilidade que um abraço, um beijo, ou qualquer outra manifestação de meiguice e de amor pode fazer toda a diferença.
Assim, mais do que partir para a proibição dos contactos de forma generalizada, haverá, julgo eu, que ver a questão caso a caso, abrindo excepções, com todos os cuidados necessários, mas que permitam, de igual modo, minorar os efeitos psicológicos do isolamento obrigatório e do sentimento de abandono e distância a que estão sujeitos todos os que vivem nessas circunstâncias tão difíceis, privados por demasiado tempo da presença dos que lhes são queridos.
E porque ninguém pode saber com exactidão o tempo que tudo isto ainda vai durar, encontrar soluções pontuais e quase cirúrgicas é a única hipótese de minorar o risco de, para os poupar a  um morte causada pelo coronavirus, os matar aos poucos, de uma forma mais lenta e mais cruel, de solidão, de desamparo, de saudade, de tristeza, de desconsolo, de aflição e de desgosto.
Mas disto, infelizmente, quase não se fala...

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Ir por aí...





Neste ano em que o lema é "ir para fora cá dentro", podemos enfim aproveitar para ver, ou rever, o que está mais perto de nós e também vale muito a pena ser visitado.
Há já muitos anos tinha estado por aqui, mas foi há tanto tempo que pouca coisa recordo. Por isso, esta visita teve o sabor de uma primeira vez, embora isso não fosse totalmente verdade.
Naquele nosso vício de fazer comparações, há quem diga que Braga é a "Roma portuguesa", como há quem tente aproximar Aveiro de Veneza. Percebo a ideia, mas parece-me, ainda assim, desajustada. Porque não se comparam lugares, como não se comparam pessoas. Cada uma tem uma individualidade própria, que a torna diferente das demais e essa singularidade é, em parte, o que faz o seu encanto. Assim, eu que não gosto nada do Porto, tive em Braga uma agradável surpresa, tal como em Março me acontecera em Aveiro, ou em 2016 em Viana do Castelo.
Braga é uma cidade magnífica, antiga e moderna ao mesmo tempo, animada, cheia de luz, de história e de vida, com um forte cunho religioso, não só pelo grande número de igrejas, por ter a mais antiga diocese de Portugal, que data do século XI, o que está na origem da expressão "isso é mais velho que a Sé de Braga" como também pelos dois santuários relativamente próximos do centro da cidade, o do "Bom Jesus do Monte" e o do "Sameiro".
E porque o número de turistas se reduziu drasticamente, agora sabe ainda melhor visitar estes lugares de paz e de silêncio, situados no alto de  um monte verdejante e de onde, olhando a cidade lá em baixo, se tem um pouco a sensação de pairar sobre o tumulto citadino, ou de estar mais perto do céu e recuperar a tranquilidade que apazigua todos os males.
E mesmo para quem, como eu, gosta muito da sua cidade e nunca se cansa de passear pelas suas ruas, praças e jardins, é bom de vez em quando deixar-se seduzir pela beleza de outros lugares, respirar outro ar, conhecer pessoas, ver como se vive noutros sítios. E voltar renovado, com mais vontade e alento para enfrentar todas as contrariedades deste novo quotidiano tão estranho, desconcertante e insólito a que temos de nos habituar e ajustar, com toda a paciência do mundo.
E eu que tenho a  mania da Europa e das suas cidades cosmopolitas, que adoro França e Espanha de diferentes maneiras e por razões diversas, posso agora - porque não há muitas alternativas - aproveitar para conhecer um pouco melhor o meu país, o que acaba por ser, também, uma interessante descoberta. 

domingo, 19 de julho de 2020

Inconcebível


Que há pessoas em Portugal a passar por enormes dificuldades, que incluem o mais básico, que a ninguém devia faltar é, infelizmente, uma realidade que não é nova, mas que a pandemia e o confinamento vieram potenciar.
De então para cá, perto de mim, forma-se uma enorme fila à porta da Academia Militar para recolher comida à hora de almoço e de jantar. Quando, da minha janela, vejo toda aquela gente à espera de recolher uma refeição, arrepio-me sempre a imaginar como deve ser duro viver assim e quase me sinto mal de reclamar pelas limitações do nosso quotidiano actual, pelo tédio de não poder ir onde quero livremente, ou de estar há muito tempo sem ver pessoas de quem gosto muito, por força das circunstâncias. E então, tomo consciência de forma mais clara de que sou uma privilegiada e de como, tantas vezes, me queixo, ou aborreço, "de barriga cheia".
No entanto, há uns tempos, encontro com frequência na minha rua, e nas imediações da Academia Militar, pães, sopas e pequenas caixas plásticas com comida, junto dos caixotes de lixo, na beira dos passeios, ao pé das árvores, ou largadas de qualquer maneira, um pouco por todo o lado. E pergunto-me o sentido que faz ir buscar comida para depois a deixar pela rua, desperdiçando aquilo que seguramente fará falta a tantas outras pessoas que não o conseguem ter.
Enfim, tratando-se de situação tão recorrente, deveria ser de algum modo controlada, porque é um verdadeiro escândalo e uma imoralidade, que não pode deixar de indignar-nos.