quarta-feira, 29 de abril de 2020

O que só nós sabemos



Se não podemos ver-nos nem tocar-nos, sobra a saudade. Faltas-me tu, as nossas tardes e os nossos dias, os instantes perfeitos de estarmos juntos, perdidos nos olhos e na pele um do outro, e todos os momentos de abraços sem pressa que sempre nos pareciam o paraíso e a eternidade.
Falta-me a magia de quem se entende apenas pelo que vê no fundo de outros olhos, faltam-me os teus olhos, as tuas mãos, o teu corpo,  os nossos silêncios e até os nossos amuos. Faltas-me tu e todas as sensações de te ter perto, todos os sonhos e esperanças, as carícias e o prazer, e o silêncio emocionado de estar juntos e isso ser bom, como uma fatalidade a que não podemos nem queremos escapar.
Agora percebo ainda melhor como é forte o que nos une; e tenho a certeza que não há abraço melhor que o teu, que  eu estou contigo e tu comigo para sempre, na tranquilidade de um afecto tão fundo como uma certeza absoluta, e na harmonia secreta do que não precisa sequer de ser dito para ser verdade.
Quando nos pudermos voltar a abraçar, esqueceremos o mundo e voltaremos a esse universo só nosso, com o tempo suspenso no despropósito maravilhoso do que só nós somos e conhecemos, libertando as mais audaciosas vontades, entregues à exaltação de todos os sentidos, nos instantes em que mais nada, nem mais ninguém, importa. E enquanto esse momento não chega, na minha cabeça vai soando aquela canção muito antiga: (...) dentro dos meus braços os abraços hão-de ser milhões de abraços, apertado assim, colado assim, calado assim, abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim, que é pr'acabar com esse negócio de você longe de mim...)


sábado, 25 de abril de 2020

Liberdade



O 25 de Abril apanhou-me em plena adolescência, com uma incipiente consciência política por força da idade e das circunstâncias. Ainda assim, entre memórias mais nítidas ou mais difusas que guardo dos tempos da revolução e dos anos que se lhes seguiram, fica-me sempre a sensação de novidade, de incerteza e de esperança, mas, sobretudo, de festa desmedida.
E, no meio da rebaldaria total que era a escola por essa altura, para lá de todos os excessos da época, de tudo o que correu bem e mal, aqueles foram anos em que me diverti muito e que me orgulho de ter podido viver.
Hoje, 46 anos depois de um dia tão singular sob todos os pontos de vista ("o dia inicial inteiro e limpo" nas palavras de Sophia de Mello Breyner), a liberdade e a democracia tornaram-se tão óbvias e naturais como qualquer dado adquirido e, por isso, inquestionável. E, apesar de às vezes se tender a pensar, erradamente, que celebrar a liberdade é apanágio da esquerda e que o conceito é menos apreciado à direita, como se ela pudesse ser apenas de alguns e não de todos, apesar de muitos acharem que no "estado de emergência" a que estamos obrigados por causa da pandemia que nos aconteceu grande parte dos direitos, liberdades e garantias desapareceram ou estão em suspenso, eu diria, parafraseando um grande poeta injustamente esquecido - Ary dos Santos - que "agora ninguém mais cerra/ as portas que Abril abriu."

domingo, 19 de abril de 2020

A nostalgia do resto do mundo










Agora que não podemos ir por aí fora a conhecer o mundo, que tudo nos parece mais pequeno, vazio e solitário, faltam-me as minhas cidades, como me faltam as minhas pessoas. Entre umas e outras encontro muitas semelhanças. Podem atrair-nos e enamorar-nos ao primeiro olhar, mas só se conhecem devagar e com o tempo, revelando-se-nos aos poucos na sua complexidade, e numa descoberta lenta que pode ser apaixonante, ou decepcionar-nos para sempre.
Amo as cidades, cosmopolitas e efervescentes de vida, ou mais pequenas e tranquilas, exuberantes ou discretas, mas com qualquer coisa de peculiar, uma magia própria, que pode estar no movimento das ruas, no bulício matinal, num cheiro diferente ou num recanto  tranquilo e mais ou menos secreto, num pormenor de arquitectura, ou no modo como as pessoas vivem, circulam, interagem.
Conhecer cidades é para mim o lado mais interessante das viagens. Por isso, preciso de voltar uma e outra vez até nos conhecermos, nos fazermos íntimas e me poder sentir como em casa, confirmar apegos, deixar-me levar naquela preguiça boa de ir sem destino, à procura do que me enche a alma e me faz sentir uma felicidade maior.
Partir é tão bom como voltar. Eu, que preciso com frequência de respirar outros ares para me (re)encontrar em novos lugares ou nas cidades que eu amo, vejo-me agora, como toda a gente, limitada às quatro paredes da minha casa, que eu adoro, mas de qual preciso às vezes de sair para querer voltar.
Faltam-me os lugares e as pessoas - os que eu conheço e os que me falta descobrir - como me falta o vento no cabelo e a brisa do mar. Falta-me a luz de Lisboa ao fim da dia, que agora só vejo da minha janela, a lânguida quietude dos fins de tarde frente ao rio, de olhos, movimentos e pensamentos à solta, sem limites nem poiso certo.
Ligo-me às cidades com a mesma dedicação e afecto com que me ligo às pessoas, deixando que me seduzam devagar, e que cada reencontro saiba à familiaridade do que já se conhece e ao espanto do que é capaz de continuar a surpreender-nos. E, tal como no amor, delicio-me a contemplá-las, deixo-me arrebatar sem dar pelo tempo passar e sento-me em silêncio muitas vezes, como quem se abriga num colo conhecido, deixando-me envolver pela serenidade desse doce encantamento, em momentos que depois gravo na memória para horas de desgosto, desencanto ou aflição, como estas por que passamos agora.
Assim, revivo todas as horas de felicidade que guardo na memória, todos os abraços, os beijos e os passeios que nunca pude esquecer, para mitigar o tédio e a solidão. Mas, mesmo querendo continuar a acreditar que tudo vai voltar a estar bem e a ser bom, que não há impossíveis, e que, na lógica do perpétuo movimento, o que há-de vir poderá ser  ainda melhor, é impossível não querer agora voltar a encontrar e a deixar-me deslumbrar pelas cidades e pelas pessoas.

sábado, 11 de abril de 2020

O apelo da rua


Passado quase um mês do "confinamento", que tenho seguido de forma rigorosa, com saídas apenas para ir ao supermercado e à farmácia, hoje, pela primeira vez, o sol e o maravilhoso dia de Primavera acabaram  por se me impor com mais intensidade e cedi à tentação de dar uma pequena volta no bairro. Havia algumas pessoas na rua, levadas, provavelmente, por um propósito semelhante ao meu de esticar as pernas, respirar o ar "lá de fora", caminhar um pouco sem destino certo, ou apenas porque sim. 
Que estranhos tempos os que vivemos: com vagar para tudo, desacelerámos os gestos, demoramo-nos em pequenas tarefas que antes fazíamos a correr, percebemos a importância do que outrora tínhamos como garantido e agora nos parece um sonho por concretizar.
E enquanto esperamos pelos abraços que nos fazem ver o mundo de pernas para o ar e pela possibilidade de andar outra vez livremente pelo mundo, sem luvas, sem máscaras, sem afastamentos nem proibições, pensamos em todos os que sofrem ou lutam para vencer tudo isto que aconteceu e, naturalmente, não podemos deixar de nos sentir, ainda assim, privilegiados só por poder ir ali e voltar.

domingo, 5 de abril de 2020

Recolhimento



Com o mundo inteiro estranhamente silencioso, começa hoje a que será a mais peculiar de todas as Semanas Santas que já vivemos, propiciando de forma mais intensa a espiritualidade que este tempo requer. Obrigados ao isolamento, em forçada clausura que gostaríamos que não tivesse acontecido, poderemos enfim virar-nos um pouco mais para dentro e (re)pensar-nos.
Serão, sem dúvida, uma Semana e uma festa diferentes de todas as outras. A Páscoa é para mim, juntamente com a Romaría del Rocío e, muito antes do Natal, -  imensamente corrompido pelo consumo excessivo e os gestos maquinais - a grande celebração da fé. Talvez, também, dada a sua coincidência com a Primavera, que, é de igual modo, o meu tempo de eleição, e que tem muito a ver com a plenitude do recomeço e com a festa da vida.
Este ano faltarão todos os sinos, as velas, as glórias e aleluias, a igreja cheia cantando em uníssono, os cânticos de exultação, os coelhinhos e os ovos, os abraços de quem nos quer bem, e todos os rituais e sinais exteriores da festa da vitória da vida sobre a morte.
Mas a Páscoa é também o tempo da esperança renovada, de nos perturbarmos com o inacreditável do que celebramos e é tão bonito, da alegria de acreditar no amor acima de tudo, e de reactivarmos o que de há de melhor no mais fundo de nós.
E, afinal, todos os momentos intensos da vida sentem-se sobretudo pelo lado de dentro; e nunca precisam de muitas palavras.

sábado, 4 de abril de 2020

Uma bolachinha?


Tenho uma confissão a fazer: sou uma "menina da mamã".
A nossa relação sempre foi intensa e profunda, um daqueles laços fortíssimos que não se explicam e apenas se sentem pelo lado de dentro, unidas e agarradas uma à outra até em momentos de desacordo, amuo, ou conflito, que também fazem parte do amor, uma ligação visceral que ela sempre gostava de justificar - porque encontrava justificações para tudo, fossem certas ou não - com o facto de me ter amamentado a leite materno.
A minha mãe, que para mim é a melhor do mundo, teve também os seus erros e falhas, como toda a gente. Mãe-galinha total, sempre excessivamente preocupada com o nosso bem-estar e felicidade, vivia no pavor de que pudéssemos passar fome. Por isso, mesmo já crescidas, sempre que a visitávamos ou era ela que ia a nossa casa, enchia-nos de comida, que podia ser fruta, os seus maravilhosos croquetes ou marmelada, qualquer coisa que sabia que nos dava alegria e prazer, ou que ela achava que era bom para nós.
É a ela que devo, pois, o vício das bolachas. Porque nessa sua ânsia de que não nos faltasse nada, costumava perguntar com regularidade: não queres uma bolachinha? E eu queria. Queria sempre. Por isso ainda hoje adoro bolachas e, apesar de tentar controlar o mais possível a minha gulodice para manter a linha, não dispenso nunca as bolachas Maria, que tanto me lembram aquela pergunta.
Hoje, sinto a falta dela mais que nunca, e de todos os seus mimos e cuidados.
Hoje, que o nosso amor é, também para mim, sinónimo de preocupação constante, sou eu que tenho que cuidar de que não lhe falte nada e de que possa estar tão tranquila quanto possível no seu mundo de silêncio e movimentos reduzidos, ainda mais agora que este maldito bicho nos impede de nos vermos e de nos dizermos tudo apenas pelo toque e pelo olhar.
Nem imagino a falta que lhe farão por estes dias  as minhas conversas e parvoíces, os meus beijinhos e festas, ou as canções desafinadas que lhe cantava baixinho para a embalar.
E, enquanto espero pelo dia em que possa voltar a ver a serenidade silenciosa dos seus magníficos olhos verdes, que muito me tranquilizam, em que possa voltar a abraçá-la  e a chamar-lhe "mamita" e "mãe Lourdes" e dizer-lhe o que ela sabe de cor,  - que eu gosto muito dela  - e senti-la a apertar com força a minha mão, sei que o nosso amor continuará imutável, porque está antes e depois das palavras e porque está sempre connosco, mesmo na distância a que estamos obrigadas.