quarta-feira, 30 de abril de 2014

O que fica...

 
- Mas nós nunca aceitamos a noite sem remédio
nem a treva por substância do destino:
percorre-nos uma íntima ansiedade
de salvação até ao último momento,
- já sem nada a dizer e sem acreditarmos,
já com tudo contado, pesado, dividido,
é fatal que inda a esperança persista no limite
e por isso vivemos e nos comove a vida.

VGM


(Apenas isto: porque esta é uma quarta-feira atípica, diferente das outras; e porque para além dos homens, o que fica são as palavras dos poetas, que nos enchem a alma, nos comovem e embelezam a vida.)

(Fotografia de mfc, do blogue Pé de Meia)

terça-feira, 29 de abril de 2014

Ler, ler, ler...

 
Gosto de dias férias assim tranquilos, em que o tempo corre devagar e não há planos, nem horários, nem obrigações, em que nada está previsto ou combinado, e tudo se vai fazendo segundo a vontade de cada instante.
Por esta altura preciso sempre de um tempo de silêncio e de solidão, a sós comigo, com os meus pensamentos e o meu mundo, que me reequilibram e me devolvem a paz interior e a harmonia com o universo. Pode ser em casa, junto ao mar, ou deambulando pelas ruas da cidade, olhando-a com os olhos limpos, como se a visse pela primeira vez.
É então que me sabe melhor entregar-me também longamente à leitura, lenta e preguiçosamente, que é como se deve ler, sem olhar para o relógio, deixando-me apenas levar pela magia das palavras.
Desde que me lembro, sempre houve livros à minha volta. E a leitura sempre me fascinou. Por isso estou sempre a ler alguma coisa. Depois de ter passado pela Faculdade de Letras, então, não consigo ler um livro de cada vez. Há sempre, pelo menos, três livros que me ocupam em cada momento, nas minhas três línguas: português, francês e espanhol.
Os livros fazem uma enorme companhia, ensinam-nos o sonho e a vida, levam-nos para destinos que não imaginávamos que existissem e ajudam-nos a traçar caminhos. Fortalecem-nos. E, não tenho dúvida, de que ao entregarmos-lhes a alma, por um qualquer feitiço ou inexplicável milagre, tornamo-nos melhores pessoas.

domingo, 27 de abril de 2014

Fica o mundo mais triste, empobrecido...


Soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

                                                  Vasco Graça Moura
(Apesar do sol e da linda luz de Primavera, este é para mim um dia muito triste. Não o conhecia pessoalmente, mas fazia de certo modo parte da minha vida. Porque há poucas pessoas por quem eu tenha tão grande admiração intelectual e apreço. Estima, até. Porque este "Príncipe das Letras", como tão justamente lhe chamou Maria Alzira Seixo, ensinou-me a pensar e a viver melhor. E isso é tanta coisa...
Sei que agora já não vou abrir o DN à pressa à procura do que vem na penúltima página, que me vai fazer falta a sua inteligente e sensata opinião, e que as minhas quartas-feiras serão, por isso, um pouco mais tristes.
A língua portuguesa perde o seu mais acérrimo defensor, que lutou com garra e convicção, até ao limite das forças e do tempo, contra o cinismo dos políticos que insistiram numa aberração sem querer saber de consequências, ou sequer ouvir quem sabe; que deu lugar de destaque  às línguas e humanidades no CCB, e que nos deu tanta, tanta coisa, para além do seu enorme talento.
A má notícia de hoje não era inesperada, mas não imaginava que fosse já e não queria que fosse nunca. Por isso não pude, não posso, enquanto murmuro esta canção, evitar as lágrimas. Elas são sinal de emoção e não de debilidade, como ouvi a alguém, um dia. E, hoje, morreu-me um amigo, que era o que,  de certa maneira, Vasco Graça Moura era para mim.
Ficámos, todos, ainda mais pobres...)

sábado, 26 de abril de 2014

Intensamente belo e perturbador


Dizer que é uma obra-prima poderá talvez ser excessivo. Mas este Jeune et Jolie parece-me um daqueles filmes que não se pode perder. Mesmo descontando o facto de eu ser um pouco suspeita. Não é novidade que gosto muito de cinema e que o cinema francês ocupa um lugar de destaque nas minhas preferências. Posso até acrescentar que François Ozon é sem dúvida um dos "meus" realizadores, no sentido em que o vejo como garantia de qualidade quase certa.
E, ainda assim, surpreendeu-me. Tinha estado para ver este filme no Outono, na Festa do Cinema Francês. Desisti à última da hora, por razões que não importam. Vi-o agora. E valeu bem a pena.
O que nos conta vem um pouco na linha de La Vie d'Adèle, centrando-se na figura de  uma menina-mulher à descoberta de si e do corpo, naquela sede de amor e de absoluto tão arrebatadoramente juvenil.
Tal como Adèle Exachopoulos, aqui é Marine Vatch que ocupa o filme todo pela força da sua enorme beleza e sensualidade, que tornam uma e outra inesquecíveis. Mas a frescura de Adèle é substituída pelo ar algo enigmático de  Isabelle/Léa, sempre um pouco longínqua e misteriosa. Quase parecendo, à primeira vista, desprovida de emoção ou sentimento.
Também o que era excessivo e demorado em La vie d'Adèle, mesmo maçador, é aqui contenção, tempo certo, sugestão mais que revelação, e uma infinidade de perguntas que ficam sem resposta. Nisto reside, quanto a mim, grande parte do encanto do filme. Cada um de nós encontrará a sua verdade, as suas respostas, ou sentir-se-á apenas inquieto, sem saber o que dizer, ou o que pensar.
O modo como o filme nos coloca perante questões como o que leva uma rapariga da classe média alta, que aparentemente tem tudo para um caminho de sucesso (afecto, inteligência, beleza, dinheiro) a sair do caminho traçado e a viver uma vida dupla, como trata os temas do que significa crescer, da procura de sentido para a vida, da aprendizagem do prazer e da dor, das relações familiares, de como nos relacionamos com uma juventude que não tem por que lutar nem o que desejar, da normalidade e da transgressão, sem nunca apresentar soluções, é o que há nele de mais avassalador e tocante.
E há cenas magníficas, das quais destaco duas: a aula no liceu Henri IV em que os alunos recitam Rimbaud: On n'est pas sérieux quand on a 17 ans / et qu'on a des tilleuls verts sur la promenade e a seguir falam sobre o texto (a dar-me umas ideias interessantes para Setembro), ou a cena de amor na praia, logo no início, quando no momento em que perde a virgindade, totalmente despojada de afecto e de ternura, a personagem sai do seu corpo e se observa a si mesma.
E apesar das canções de Françoise Hardy que integram a banda sonora, foi de Moustaki que me lembrei ao ver este filme, e em particular da letra da canção 17 ans, tão apropriada à descoberta da sexualidade e do prazer da sedução. Diz assim: 17 ans une femme, une enfant, qui ne sait rien encore et découvre son corps (...) une faim de loup et une soif de tout (...) comme un fruit éclaté, comme un cri révolté...
Jeune et Jolie é tudo isto e muito mais. É um filme a ver...

sexta-feira, 25 de abril de 2014

40 anos depois



https://www.youtube.com/watch?v=IRqsnI7vpcw 

Tenho memórias difusas e desgarradas do que foi este dia há quarenta anos. Lembro-me que era quinta-feira e estava um dia de Primavera como o de hoje, ventoso e pouco quente. Que não houve aulas, nem saí de casa; e que tudo se passou mais ou menos de ouvido atento às notícias da telefonia (como se dizia na altura) e de olhos postos ora na televisão, ora na janela, de onde em frente se viam soldados armados de metralhadoras, na esquina da Duque d'Ávila e Marquês de Tomar, pela proximidade com Quartel-General da Região Militar de Lisboa, então situado no Palácio de Vilalva, em São Sebastião.
Sem qualquer consciência política, não tinha a noção exacta do que se estava a passar, e o que retenho desse dia, acima de tudo, são os olhares expectantes, feitos de nervosismo e ansiedade, dos adultos que me rodeavam.
Recordo melhor o que veio depois: todos os excessos, em sentido positivo e negativo também, e a crença quase generalizada num mundo melhor. Na verdade vivi a adolescência em plena euforia pós-revolução, com tudo o que isso teve de bom e mau.
E hoje, quando olho para trás, penso que nestes quarenta anos está a substância da minha vida inteira e a maior parte da minha história. Em liberdade, pois!...

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Memórias de infância



Quand au hasard des jours
Je m'en vais faire un tour
À mon ancienne adresse
Je ne reconnais plus,
Ni les murs, ni les rues,
Qui ont vu ma jeunesse...

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um filme diferente


Na verdade não me lembro de ter ouvido falar de Wes Andersen. Mas Ralph Fiennes merece sempre uma ida ao cinema. Acho eu... Ainda mais quando acompanhado de um elenco de luxo, que inclui, entre outros, Adrien Brody, Jude Law, Owen Wilson, Bill Murray, Léa Seydoux.
Fui; e não me arrependi. É um filme diferente do que estamos habituados a ver, fantasioso, divertido,  burlesco até, aqui e ali, e construído em ritmo quase alucinante.
Não é uma daquelas comédias de riso alarve e fácil, que eu detesto, mas antes um filme que vale a pena ver, que nos conta uma história peculiar e que nos faz  passar uma agradável hora e meia. E, afinal, não é essa também a função do cinema, a mais óbvia e imediata?

terça-feira, 22 de abril de 2014

Afectuosamente, Helena

 
A apresentação de cada livro da Helena Sacadura Cabral é, antes de mais, uma festa. Um encontro de amigos, onde os afectos ganham lugar de destaque. Porque a Helena é assim: uma mulher fascinante e muito terna, de olhar vivo, profundo e perscrutante, a quem apetece encher de beijinhos e de mimos.
O que sempre me impressiona, nestas ocasiões, é a forma calorosa como recebe cada pessoa, o sorriso grande e franco de quem está bem com a vida, a gargalhada sonora e acima de tudo uma certa humildade, que não é de todo falsa modéstia, mas antes a sabedoria de quem não se leva demasiado a sério e sabe rir-se de si mesma.
A Helena, mesmo com o prestígio e conhecimentos que tem, não é de vaidades parvas, nem assume nunca aqueles "ares de grande escritora". E, por isso, é muito fácil sentir-se perto e ser tocado pela sua mensagem, que é sobretudo a da importância do amor.
O novo livro da Helena "O que aprendi com a minha mãe", que ainda mal comecei a ler  é, pois, naturalmente, sobre os afectos. Na introdução diz isto: Existem na vida de todos nós pessoas que nos marcam para sempre. Umas, pela presença constante. Outras, pelas sementes que largam no nosso caminho.
De si mesma, diz muitas vezes: gosto de gostar.
Era assim que devia ser sempre. E, na época que vivemos, mais ainda...
E é isto que tem este mundo da blogosfera, para além de um lado negativo que tem também, como tudo, e do qual  pude já conhecer uma pequena parte: esta coisa maravilhosa e compensadora de trazer à nossa vida pessoas fantásticas, cuja presença nos acrescenta, ensina e enriquece.
Por mais este livro e por tudo o resto, devíamos agradecer-lhe. Pela minha  parte, aqui fica: a Helena é uma pessoa de quem eu gosto muito! E de quem é bom gostar... 

(Fotografia de Neuza Ayres)

domingo, 20 de abril de 2014

Domingo de Páscoa


É todos os anos o mesmo ritual e, ao mesmo tempo, é sempre diferente. A Páscoa toca-me de uma maneira especial. E comovo-me com a igreja cheia, o som dos sinos, e todos os glórias e aleluias. E com a mistura do sagrado e do profano, a alegria do recomeço e da renovação que a Primavera ajuda a consolidar, os cheiros de flores, os ovos e os coelhinhos, um outro ciclo de vida e tudo a ser de novo possível.
Nestas alturas, sinto-me ainda mais abençoada e protegida, fortalece-se-me a fé e enche-se-me o coração de uma tranquila serenidade. Daqui a sete semanas é Pentecostes, e chega a Romaria do Rocío, que é também muito importante para mim.
(Fotografia de Miguel Vitorino)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

A "Madrugá"


Na Andaluzia, de que eu tanto gosto, há três momentos que marcam a Primavera: a Semana Santa, a Feira de Abril e a Romaria do Rocío, de que já aqui falei.
Na Semana Santa, Sevilha modifica-se, enche-se de gente e, entre o Domingo de Ramos e o Domingo de Páscoa, pelas ruas apinhadas passam as procissões das cerca de cem confrarias e irmandades, num percurso que as leva até à Catedral.
Mas é na madrugada de Sexta-Feira que  a Semana Santa de Sevilha vive o seu momento alto e verdadeiramente especial - la Madrugá - com a saída das seis mais emblemáticas e conhecidas confrarias, por ordem de antiguidade, ao longo de toda a noite: La hermandad del Silencio; la del Jesús del Gran Poder; la Esperanza Macarena; el Calváriola Esperanza de Triana; e la de Los Gitanos.
É uma noite de magia e de emoção, com as imagens religiosas mais carismáticas de Sevilha nas ruas a cheirar a incenso e a flor de laranjeira, entre música, silêncio, os passos dos costaleros que transportam os andores (los pasos) e as saetas, um cântico religioso de cariz flamenco, intenso e dramático, cantado de forma aparentemente espontânea a capella, desde uma varanda ou em plena rua, diante das imagens.
Apesar de não parecer, nunca estive "ao vivo e a cores" na Semana Santa de Sevilha. Mas algum dia será. O que conheço da Madrugá é apenas o que vi pela televisão, o que li e o que me contaram.
E se me interessa tanto tudo isto é  porque há, na maneira festiva e de certo modo grandiosa como os espanhóis vivem a fé, uma alegria intrínseca, até nos momentos de maior seriedade e recolhimento, com a qual me identifico muito mais do que com a religiosidade portuguesa, que me parece bem mais tristonha e "lamurienta"... 
(Fotografia de Pepo Herrera)


quarta-feira, 16 de abril de 2014

Viver em Liberdade



Liberdade é a palavra que mais se ouve por estes dias, cujos limites e acepção se discutem tão exaustivamente que quase se lhe esvazia o sentido. Não quero reduzir ou minorar a importância que lhe é devida, mas não tenho na verdade memória do que é viver sem ela. Ainda bem...
E, estranhamente, ou talvez não, quando a ouço, mais do que o 25 de Abril, ou de igual modo, é  Éluard que me vem à cabeça; e um poema de que me lembro desde sempre, que já soube de cor, inteirinho, apesar de agora já só conseguir dizer o início e o fim.
Escrito  em 1942, num tempo em que, sob a ocupação alemã, a França também ambicionava  voltar a ser livre, ele diz mais, muito mais que qualquer discurso, por mais elaborado e bonito que seja.
É assim:

Sur mes cahiers d’écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J’écris ton nom


Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J’écris ton nom


Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J’écris ton nom


Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l’écho de mon enfance
J’écris ton nom


Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J’écris ton nom


Sur tous mes chiffons d’azur
Sur l’étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J’écris ton nom


Sur les champs sur l’horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J’écris ton nom


Sur chaque bouffée d’aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J’écris ton nom


Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l’orage
Sur la pluie épaisse et fade
J’écris ton nom


Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J’écris ton nom


Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J’écris ton nom


Sur la lampe qui s’allume
Sur la lampe qui s’éteint
Sur mes maisons réunies
J’écris ton nom


Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J’écris ton nom


Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J’écris ton nom


Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J’écris ton nom


Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J’écris ton nom


Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J’écris ton nom


Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J’écris ton nom


Sur l’absence sans désirs
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J’écris ton nom


Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l’espoir sans souvenir
J’écris ton nom


Et par le pouvoir d’un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer


Liberté
                                     Paul Éluard


 (Fotografia de mfc, do blogue Pé-de-Meia)

terça-feira, 15 de abril de 2014

Um dia diferente

 
Dizer de cada dia que é recomeço, ou continuação, é quase um lugar comum. Mas há também os dias diferentes, em que tudo se afasta do habitual e se vivem entre o nervosismo e a excitação da novidade, por mais banal que ela possa ser.
Em dias assim, preparados com antecipação e aguardados na ânsia do que vai ser, é preciso encontrar o justo equilíbrio que permite vivê-los com a serenidade possível, aproveitar o lado bom de cada instante e esquecer o resto, entregando-se com confiança e de alma leve, e acreditando, fundamentalmente, que tudo pode sempre ser melhor.
Enfim, hoje, que não deixa de ser um dia singular na minha vida, diferente de todos os outros,  faço meu lema esta frase, que li já não sei onde: je crois en moi et en mon succès et je porte en moi le triomphe.
E sorrio, com alegria.

domingo, 13 de abril de 2014

As Asas do Desejo

 
https://www.youtube.com/watch?v=GfznAXht2o0

Lembro-me de quando eu era muito pequena e rezava ao anjo da guarda antes de adormecer. E até deturpava um pouco a oração. Ouvia a minha irmã: "Anjo da guarda, minha companhia, guarda a Teresinha e a maninha, de noite e de dia." E eu, logo a seguir, na ânsia de imitar a mana mais velha, acrescentava-nos mais uma irmã. Dizia: "Anjo da guarda, minha companhia, guarda a Isabelinha, a Teresinha e a maninha, de noite e de dia." E por mais que me dissessem: "Não, a maninha de que a Teresa fala és tu", eu não me convencia. Ficou sempre assim: "a Teresinha e a maninha".
Na verdade, ainda hoje acredito que há na minha vida um "anjinho da guarda" que me acompanha, que vela por mim e que "guia a minha alma de noite e de dia", tal e qual como na oração da minha infância.
Não sei se terá sido também por isso que gostei tanto de "As Asas do Desejo" de Wim Wenders, que é sem dúvida um dos filmes da minha vida. É um filme já antigo, de 1987, muito falado na época em que saiu e que julgo  ter sido premiado no Festival de Cannes, pelo menos. Na altura, comprei a banda sonora. Em vinil, claro.
O título original, Der Himmel uber Berlin, situa-o no espaço, onde Bruno Ganz e Otto Sanders (os anjos Damiel e Cassiel) são os heróis, que velam pelos que sofrem e acompanham os pensamentos e as vozes interiores daqueles com quem se cruzam. É magnífica a cena da biblioteca, por exemplo, ou a história de amor com a trapezista solitária, que leva  o anjo a apaixonar-se e a querer perder a imortalidade para viver a condição humana no que há nela de mais simples e encantador.
E o filme tem ainda Nick Cave e o poema de Peter Handke: als das kind kind war (...) wusste es nicht dass es kind war (...) und machte kein Gesicht beim fotografieren. Há pois muita coisa que faz deste filme um filme excepcional.
(E eu acredito que há anjos nas bibliotecas; e que é maravilhoso deixar-se ir nas asas do desejo...)

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Manhãs de Sexta-Feira


Há nas manhãs de sexta-feira um indelével e subtil encantamento, que não encontro nas outras: são lentas e promissoras como quem sorri ao aproximar-se, deixando adivinhar, na iminência de um simples abraço, o sobressalto e o consolo de uma entrega sem pressa, entre a ilusão do que está por vir e a alegria do que vai acontecendo devagar.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Isto anda tudo ligado...

 
Da minha leitura de hoje do DN, destaco isto:
(...) uma camada de público jovem que cresceu completamente divorciada da grande tradição cultural portuguesa e europeia e sobre ela nada sabe. (...) Presentemente disponibiliza-se algum saber "truncado" de raízes que são essenciais para a formação equilibrada da personalidade, do conhecimento do mundo e da fruição artística, sempre em nome do que está a acontecer. Muito noticiário, muito ensaio, muita fotografia, muita prosa parecida. Quase não passa daí. As deficiências do ensino escolar nas matérias canónicas contribuíram para agravar a situação. Quando lemos as declarações dos próprios artistas, dos produtores, dos promotores e tutti quanti, ficamos com a impressão de que se está a criar uma nova espécie de pidgin "literário e crítico", destinada a ser lida, citada e papagueada, e depois equecida rapidamente para dar lugar a outra, não muito diferente na ênfase e no estilo.
("A estrada larga" por Vasco Graça Moura) - Sim, eu sei, de novo...
E ainda isto:
Os reformados e os funcionários públicos são os dois segmentos da população mais afectados pela crise. Os dados do Gabinete de Apoio aos Sobre-endividados (GAS) da Deco mostram que os pedidos de ajuda cresceram, no primeiro trimestre, apenas entre os reformados e trabalhadores do estado. "Os funcionários do sector público alegam os cortes salariais, assim como a diminuição do rendimento disponível, no final do mês, para as maiores dificuldfades financeiras sentidas este ano.

Aparentemente muito diferentes entre si, no estilo como no conteúdo, estes dois "destaques" são bem a imagem do país pobrezinho, tacanho e inenarrável onde nasci e vivo, que me desilude, entristece e desgosta, mais e mais, a cada dia que passa.
E mesmo sendo uma optimista, como julgo ainda ser, é difícil acreditar que tudo isto possa algum dia transformar-se em qualquer coisa diferente. Melhor.
É por isso que, por mais que me lembre das metáforas de Jorge Palma (...) "enquanto houver estrada pr'andar, a gente vai continuar", eu olho à minha volta e é Sophia de Mello Breyner que se lhe sobrepõe:

Irás ao paço.
Irás pedir que a tença
Seja paga na data combinada.
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce.

Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou ser mais que a outra gente.
(...)
Irás ao paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência.
Este país te mata lentamente.

terça-feira, 8 de abril de 2014

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Ler ou falar?

Perante uma situação qualquer que exige falar diante dos outros, a maior parte das pessoas opta por ler. Esquecendo que fazê-lo em voz alta requer também treino e talento. E que ouvir ler, por mais interessante que seja o texto, pode muitas vezes não surtir o efeito pretendido e tornar-se verdadeiramente maçador para quem está a ouvir. Ou, pelo menos, mais difícil de seguir.
Por isso é sempre preferível olhar a audiência nos olhos e falar-lhe. Ainda que o discurso, mesmo previamente preparado, não seja tão estruturado, nem saia tão "arrumadinho".
E isto é válido para quase tudo: para a escola e para a política, para conferências, seminários e colóquios. Para todo o tipo de reuniões. E para lançamentos de livros, também. Era aqui que eu queria chegar. Ultimamente, tenho assistido a alguns. Uns mais interessantes que outros, consoante os intervenientes e a capacidade comunicativa de cada um dos oradores. Ainda assim, é preferível ouvi-los falar do que ouvi-los ler. A menos que façam como Luís Filipe Castro Mendes, que pegou no seu novo livro e nos leu alguns poemas. Essa sim, pode ser uma interessante apresentação.
Mas nos últimos dias fiquei espantada com uma outra, que foi a antítese desta. Em que quer a editora, quer o autor, leram. Olhando para uma folha de papel em vez de olhar para as pessoas que se sentavam na sua frente e que, supostamente, se tinham deslocado para ouvir falar do livro, o qual deveria ser, digo eu, o centro das atenções. Em nenhum dos casos se leram excertos do livro, o que apesar de tudo ainda faria sentido. Um e outro, a pretexto do livro, quiseram antes mostrar-nos o seu "imenso" talento para a escrita. Ou foi isso que me pareceu...
Tinha ido por curiosidade. Não conhecia o autor, nem o livro. Não fiquei a conhecer. Vim-me embora sem comprar o livro e com pouca vontade de o ler nos tempos mais próximos. Afinal, falta-me ler tanta coisa...
E pensei que faço bem em querer que os meus alunos se habituem, logo desde o sétimo ano, a fazer apresentações e exposições diante dos colegas, sem outro suporte que não seja a palavra dita. Pergunto-me, até, o que seria se eu lesse as minhas aulas.  É que nem o argumento de que se é melhor a escrever do que a falar serve nestes casos.
Enfim, ali, só faltou mesmo um "powerpointzinho" para compor o ramalhete...

domingo, 6 de abril de 2014

Obrigada, Manuel


 
Morreu um amigo. O dia está lindo. Era assim que ele queria. Morreu um amigo de todos os amigos que não sabiam que eram amigos dele e de muitos que eram sem que ele soubesse.
Estas são as palavras de José Alberto Carvalho, sobre o dia de hoje. Eu não era amiga do Manuel. Ou se calhar era. Era sem que ele soubesse. E eu também.
Todas as pessoas que têm cancro, vencendo-o ou não, são de certo modo heróis e heroínas dos nossos dias, do nosso tempo. Relembro, de repente, outros que passaram por um sofrimento destes:  Miguel Portas, Maria José Nogueira Pinto, ou António Feio. Que tal como o Manuel foram apanhados pelo cancro numa curva qualquer da vida e lutaram contra ele, com força e dignidade, até ao limite das suas forças. Que não "desistiram da vida"... Como tanta gente anónima que passou e passa agora pela mesma luta e dor.
O Manuel Forjaz aproveitou o seu mediatismo para nos falar do que às vezes preferimos ignorar, ou esquecer. Com a coragem de quem olha o cancro de frente e o trata pelo nome. Lembro-me de o ouvir dizer que repudiava o eufemismo da "doença prolongada". E usava a palavra cancro sem medo. Ficou célebre a sua frase: "Posso morrer da doença, mas a doença não me matará." Mais que isso, no lançamento do livro disse: "Por mais difícil que seja a situação por que estás a passar, se estiveres atento, vais reparar que a vida é uma dádiva maravilhosa que não se pode desperdiçar." Esta é talvez a sua maior lição.  Para repetir muitas vezes. Para lembrar sempre que nos aborrecemos com o que não tem a menor importância.
Hoje, quando soube da notícia que imaginávamos que chegaria mas não acreditávamos nem queríamos que fosse já, pensei no António e no Zé Maria, os seus filhos. Pensei na sua mãe, irmãos e amigos, e em todos os que o amavam. Pensei, sobretudo, na sua Helena, que eu conheci adolescente, quando ela era "Becas", a prima da Nikki, divertida, ruiva e sardenta, mas sempre serena. E gosto de pensar que ela hoje, apesar do sofrimento, mantém a serenidade.
Na página do facebook do Manuel, os filhos publicaram os seus desejos. Estes:
Não quero que os amigos chorem e que se lembrem que vivi sempre a vida como quis.
O amor da minha vida é a Bichica.
Os meus maiores feitos são o Zé Maria e o António de quem tenho um imenso orgulho.

E esta notícia:
Hoje às 11:55 o nosso pai foi embora. Com fé profunda e sem sofrimento, foi em paz em casa no seu sofá. Por favor, vivam a vida, e sorriam...
Há cerca de um ano, ouvi o Padre Tolentino De Mendonça numa missa pelo Miguel, dizer isto, que é tão bonito: a imortalidade consiste também no facto de os nossos sonhos e tudo o que nós somos perdurar para além de nós; e esta frase, do salmo: "Ensina-nos a contar os nossos dias, para que o nosso coração alcance a sabedoria".

Não vou chorar, Manuel! Vou sorrir. Por tudo; e também por haver na vida pessoas assim.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Saber esperar...


Adolfo Mesquita Nunes, de quem gosto muito, no blogue "Delito de Opinião", relembrou(me) Maria Gabriela Llansol, escritora maior da nossa literatura mas, injustamente, pouco falada. 
Este é o lado bom da blogosfera, o que mais me seduz: sermos conduzidos por outras mãos, outros pensamentos e outros sentimentos, para lugares que andam perdidos no fundo de nós ou que, simplesmente, desconhecemos.
E isso pode ser uma descoberta tão enriquecedora... 

Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém. 
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles 
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar 
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia. 
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta. 
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder 
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num 
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar 
Num livro uma página estrategicamente aberta. 
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza 
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra 
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti ---------
------------------- até que a dor alegre recomece. 

                           Maria Gabriela Llansol

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Às quartas, o Vasco


Há hábitos bons, coisas daquelas que mesmo repetidas nos sabem bem e das quais nos custa abdicar.
À quarta, para mim , é dia de ler Vasco Graça Moura. E então, de uma forma quase maquinal, assim que pego no DN, às vezes ainda no autocarro, procuro logo a penúltima página, onde espero encontrar a sua opinião.
Ultimamente, nem sempre acontece. E, nesse caso, desiludo-me e preocupo-me. Porque fica a faltar qualquer coisa à minha quarta-feira; e porque sei que motivos de saúde graves lhe têm atormentado a vida nos últimos tempos.
O Vasco (que abuso, tratá-lo assim...) é já como um amigo, apesar de ele não poder sequer imaginá-lo, nem fazer a mais pequena ideia de quem eu sou. Tenho por ele profunda admiração intelectual, como já referi aqui em muitas ocasiões, citando-o até.
Gosto sempre de o ler: como poeta, ensaísta, tradutor, cronista e sobre que assunto for: o acordo ortográfico, o ensino do português, a literatura, ou a política, como hoje.
Vasco Graça Moura é uma daquelas pessoas, valiosas e sabedoras, que deviam poder existir para sempre.
Esta quarta senti uma espécie de inexplicável alívio quando ao abrir o DN, ainda nem eram sete da manhã, encontrei o seu artigo. Chama-se "entre a zaragata e a algazarra" e, naturalmente, vale a pena lê-lo. Aqui fica uma pequena passagem:

Hoje, com o esfacelar dos impérios e a irrupção brutal de confltualiades de rivalidades étnicas, ninguém sabe para onde se voltar nem o que fazer. Não sabe e provavelmente não pode. O acumular de conflitos deslocaliza-se, o poder russo afirma-se, as guerras desmultiplicam-se enquanto, no Ocidente, a proximidade da campanha eleitoral para as europeias gera situações de disputa eleitoral de que não havia memória. Ninguém se entende. Nem os moderados, nem os radicais e muito menos os participantes nessas alianças de geometria variável e incessantemente em mutação vociferante. 
O Ocidente descobriu que pode viver, discutir, reclamar e vociferar e agitar-se violentamente entre a algazarra e a zaragata e apresta-se a viver disso por longo tempo. Também não vai a lado nenhum, mas ilude-se e entretém-se de um modo torpe e estéril.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Abril

 
https://www.youtube.com/watch?v=xH-9H75A0Tk

En avril, ne te découvre pas d'un fil
Abril, águas mil
El invierno na ha pasado, mientras abril no es terminado


Gosto deste quarto mês do ano, que é o primeiro mês completo de Primavera, e da sua intrínseca instabilidade, que faz alternar o sol e a chuva, o calor dos dias a prometer Verão e as noites frescas a reclamar ainda agasalho, recato e aconchego. 
Gosto da euforia contida dos dias azuis que crescem e aquecem devagar, de soltar o cabelo na brisa da tarde e de o sentir esvoaçar suavemente à volta da cara, em leves carícias que me fazem fantasiar outras meiguices e antecipar a concretização de desejos escondidos, ou mesmo ignorados.
Dizem que este mês cujo nome vem do latim aprilis, que significa abrir, seria, segundo o poeta latino Ovídio, dedicado a Vénus. Gosto por isso e por tudo o mais de o imaginar aberto ao amor e a novos começos. Porque Abril é um tempo de sensualidades à tona e de corpos que se enlaçam em despudor festivo, consonante com a natureza a rebentar de vida.
Gosto da sonoridade da palavra Abril, como da que têm todas as palavras terminadas em -l (Abril, Isabel) e da plácida inquietação dos sentimentos antagónicos e incertos, de todas as memórias e anseios que Abril traz consigo, de contemplar extasiada a beleza das flores, o voo dos pássaros, ou dançar alegremente ao som de uma música qualquer. De caminhar descalça na areia molhada e vazia das primeiras manhãs de praia, de me sentar em descarado e preguiçoso abandono e deixar o calor penetrar-me na pele, enquanto admiro o brilho do sol reflectido no rio que corre indiferente, indefinido e implacável, como o tempo. 

(Fotografia de mfc do blogue Pé-de-Meia)