quarta-feira, 31 de março de 2021

Abatimento e inquietação


Era como um não sei quê que vinha não sei de onde e às vezes se lhe instalava no peito e lhe ensombrava a vida. Não sabia se era cansaço, desânimo ou apenas tédio, aquela espécie de tristeza que em certos dias parecia assumir proporções disparatadas, sem que houvesse para isso uma justificação plausível, concreta, satisfatória, legítima, ou acertada.

Era uma angústia que lhe apertava o coração, era a vontade de se virar para dentro em silêncio e solidão e, ao mesmo tempo, impedir que aquele desconsolo se estendesse em tempo e espaço; era  a indecisão entre desatar as lágrimas e não precisar sequer de chegar a elas, uma consumição sem razão aparente, que tornava certos dias mais baços e difíceis de levar.

E, apesar dos pesos na consciência, do remorso e das voltas que desse à cabeça pensando que, não havendo na verdade motivo para se sentir assim, podia isso ser considerado desfaçatez ou ingratidão, havia que permitir-se, também, de vez em quando, viver um desgosto sem porquê, porque a vida não é só risos, felicidade e alegria, vai antes alternando entre luz e sombra, claro e escuro, dia e noite.

sábado, 20 de março de 2021

Enfim, a Primavera


Quando chega a Primavera, muda tudo: a minha disposição, desde logo, a cor e o cheiro dos dias, sempre a crescer em mais horas de sol, a vontade de andar na rua com roupas mais leves e coloridas, de passear pelo mundo inteiro, a temperatura que fica mais amena e agradável, o regresso da alegria e da felicidade.

Nesta altura, lembro-me sempre daquela maravilhosa descrição da chegada da Primavera vestida de luz, de cores e de alegria, olorosa de perfumes sutis, desabrochando as flores e vestindo as árvores de roupagens verdes" na história de Jorge Amado "O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá": quando a Primavera entrou pelo parque adentro, num espalhafato de cores, de aromas, de melodias. Cores alegres, aromas de entontecer, sonoras melodias. O Gato Malhado dormia quando a Primavera irrompeu, repentina e poderosa. Mas sua presença era tão insistente e forte que ele despertou do seu sono sem sonhos, abriu os olhos pardos e estirou os braços.

É mais ou menos isto que eu sinto que a Primavera me faz. É uma espécie de renascer, como se tudo começasse de novo outra vez. A partir de hoje, são três meses bons, de possibilidades infinitas, em que melhora a disposição e tudo se anima e brilha mais, e cresce a vontade de fazer imensas coisas, na luz do sol sem excessos, na claridade dos dias cheios de cores e perfumes fortes, de sorrisos radiosos e de momentos perfeitos de puro prazer. Por mim, podia ser Primavera o ano inteiro.

domingo, 14 de março de 2021

Voltar às minhas cidades


Por muito que eu goste de Lisboa - e adoro! - faltam-me Paris e Sevilha, como me falta Nice, ou Madrid, San Sebastián ou Strasbourg, e todas as cidades que eu amo e onde sempre me apetece voltar. Faltam-me, também, todas as  que ainda não conheço (e são tantas...): Veneza, desde logo, ou  Praga, ou Valência, ou Lyon, Buenos Aires, Copenhaga e sei lá que mais.
Há mais de um ano sem poder sair daqui, tenho aproveitado para conhecer melhor o meu país e para percorrer de lés a lés  minha cidade, que nunca me cansa e, como as outras, me parece inesgotável nos seus encantos.
Mas não posso deixar de sentir uma enorme saudade do frenesim dos entardeceres espanhóis, da calma do Jardin du Luxembourg, de me sentar junto ao Guadalquivir, de ouvir flamenco ao vivo, de ir ao Mercadona e ao Gibert Jeune, de ir ao Rocío e de beber um "rebujito" ou um "tinto de verano", de me demorar na esplanada do "Café de la Paix", de ouvir e falar outras línguas e de me sentir em casa, mesmo em lugares onde na verdade sou  "estrangeira".
E apesar de não poder deixar de me considerar uma privilegiada em tudo isto que vivemos no último ano, sonho cada vez mais com o dia em que possa outra vez ir por aí, entusiasmada e expectante, enchendo a alma de novidade e observando tudo nos mais pequenos detalhes. 
Conhecer cidades novas, ou regressar àquelas de que mais gosto é, sem dúvida, para mim, o lado mais interessante das viagens. É isso que agora vai ganhando cada dia mais espaço no meu pensamento e na minha vontade; e espero ansiosa o dia em que  possa enfim voltar a deixar-me encantar por elas.
 

domingo, 7 de março de 2021

Primeira(s) vez(es)


O primeiro olhar sobre o mundo. O primeiro choro. O primeiro colo. O primeiro toque. A primeira palavra. O primeiro passeio. A primeira gargalhada. A primeira casa. O primeiro dia de escola. A primeira Comunhão. O primeiro amor. O primeiro beijo. A primeira vez. As primeiras férias sem a família. A primeira viagem a Paris. O primeiro dia de trabalho. O primeiro desgosto. A primeira ruga. O primeiro desafio. A primeira escolha. O primeiro fracasso. A primeira conquista... 
De quantas primeiras vezes é feita a nossa vida? Desde esse primeiro dia 7 de Março, há muitos anos, quantas primeiras vezes já me aconteceram? É a soma do irrepetível e da novidade de cada  primeira vez, e em todos os gestos, momentos, acontecimentos, sensações e sentimentos simultaneamente iguais e diferentes que se vão sucedendo ao longo de dias e anos,  - o primeiro café do dia, o primeiro banho de mar, o primeiro dia de Primavera de cada ano, o regresso dos dias quentes, o retomar de um sonho adiado e tantas outras coisas -, que vão fazendo parte de nós e da nossa vida, marcando-a e marcando-nos para sempre.
E eu, que sou dada a celebrações "por todo lo alto", como dizem os meus amigos espanhóis, este ano, pela primeira vez, não vou poder reunir as pessoas de que mais gosto, e os abraços e beijos serão sobretudo feitos de olhares, de gestos significativos, ou de palavras. Mas, mesmo diferente, não será por isso que este  não será também um dia de festa: a MINHA, pois claro!

segunda-feira, 1 de março de 2021

O bom tempo, a Primavera e tudo


Dias cada vez maiores, sol, bom tempo, vontade de se deixar ficar na rua, de soltar o cabelo ao vento, de aproveitar a brisa da tarde, de passear despreocupadamente. Março é isto tudo. Se lhe associar uma cor, será azul claro como o céu e o mar e amarelo como o sol e as flores dos meus anos. Além desta festa de luz de alegria e de recomeço, Março é também o mês dos meus anos. E por tudo isso gosto tanto dele. Gosto do perfume destes dias, do cheiro das frésias e do sabor dos morangos, das pequenas flores que vão enchendo árvores e jardins, de ouvir cantar os pássaros e dessa promessa de felicidade renovada que este ano, se calhar, faz ainda mais sentido.
Quero acreditar que nesta Primavera vamos poder renascer deveras e voltar a uma vida mais próxima do que consideramos normal. Março começa hoje, como sempre a saber a princípio, a vida e a festa.