Sabia que aqueles eram tempos de mudança. Nem que fosse de maneira intuitiva, percebia com clareza que em si e na sua vida tudo se tornara muito diferente, dando força à ideia que lhe fora tão difícil entender e aceitar, de que tudo tem um fim e a vida não volta atrás.
Mesmo se às vezes a saudade ainda lhe doía, as lembrança boas lhe ensombravam algumas horas dos dias e uma mistura difusa de culpa, tristeza, nostalgia e desencanto se apoderava do seu ânimo. Mesmo se a incerteza do que viria depois a fazia hesitar e ter dúvidas sobre tantas coisas, ora deixando-se levar pelo coração, sem pensar, ora não querendo coisa nenhuma e caminhando simplesmente, sem certezas nem quereres, confiando em si e na sua força, amando a sua liberdade, que lhe parecia ainda maior que antes, ou, até, sonhando outras vidas e novos começos.
O calor não ajudava a serenar o corpo e a sossegar o coração, que nalgumas noites se lhe adiantava, indomado e inquieto, destapando vontades e desatando aquele fogo que, às vezes, até parecia queimar pelo lado de dentro. E depois havia também as outras noites, as que se viviam em solidão e desalento desmedidos, que a levavam a assumir todas as suas fragilidades e temores, a contemplar as estrelas em silêncio e a percorrer imagens que nem sabia se eram reais ou se existiam apenas no universo onírico em que se sentia enredada, absorta num mundo novo de possibilidades infinitas, que ansiava e temia em proporções iguais, que queria tanto e se recusava a aceitar, feito de desejos prementes e vontades inconfessadas e incertas, mas cada vez mais acesas.
A existência parecia-lhe envolta em brumas que não a deixavam ver com absoluta nitidez, em ventos que a empurravam em várias direcções, em terrenos pouco sólidos, feitos de areia fina, onde é tão fácil enganar-se no caminho, perder-se e soçobrar. Sabia que a razoabilidade lhe pedia paciência, esperas, deixar o tempo e a vida correr. Sabia muito bem que querer é deixar ir, prender e soltar.
Mas sabia também das alturas em que era como se o mundo inteiro acabasse nela e no que lhe explodia no peito, um turbilhão de emoções contidas que se soltam de repente, na urgência de se revelar.
E então pensava em bocas que lhe aliviassem a sede, em mãos que lhe percorressem o corpo, acalmando o desejo e protegendo-a de todos os perigos e medos; e em olhos perdidos no fundo de outros olhos, em risos e vozes e cheiros e em beijos demorados, que tantas vezes imaginava a que saberiam e que não se cansava de querer, no silêncio dos seus pensamentos. E nos abraços de uns braços fortes e bons à volta do corpo, num colo onde pudesse deitar a cabeça e sentir-se protegida e aconchegada. E deixar-se ficar assim, envoltos no mesmo abraço sem palavras, na entrega sem pressa do início do amor, com o tempo suspenso, a novidade de uma vida nova e uma espécie de inexplicável superstição de nenhum se atrever a afastar-se do outro antes da luz de um novo dia se deixar antever ao longe.
E queria ficar muito tempo naquele feitiço paralisante em que tudo podia parecer tão perfeito e diferente da realidade quotidiana, perdida em mil devaneios, nos desvarios de mundos cruzados e vontades indizíveis que às vezes era preciso levar um dedo até aos lábios para indicar que se mantivessem assim. E torná-lo verdade. E repeti-lo muitas vezes, na serenidade e na paz de vontades em sintonia.
Convencia-se que a vida é feita de incertezas, mistura de sonho e realidade e vontades insensatas, como as que lhe enchiam o espírito no torpor sonolento que o calor das noites de Verão embalava, como uns braços onde sabe bem ficar, em evidente antecipação do paraíso. E vinha a certeza que o amor emociona tanto que pode valer a vida. E que chegaria de novo à sua, em todo o seu esplendor, se não estivesse já ali, ocultando-se na desigualdade dos dias e revelando-se nos momentos em que se virava do avesso.
(Fotografia de Paulo Abreu e Lima)