quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Coisas de irmãs



Desde que me lembro de existir, o mês de Fevereiro, e em particular o dia 27, sempre teve nome próprio: Teresa. E este nome é-me tão familiar, que nem sei dizer se o acho bonito ou não. Teresa é para mim igual a essa inexplicável irmandade que me faz pensar em como são peculiares estes laços, tão diferentes de todos os outros afectos ou ligações e muito para lá de genes, sangue, apelidos comuns, heranças várias, memórias partilhadas, ou tudo o que  possa associar-se a parentescos.
A minha irmã trata-me sempre com uma maternal condescendência que às vezes me irrita e outras vezes me diverte, mas que na verdade sei que não é mais que preocupação genuína de irmã mais velha, como gestos de amor disfarçados.
E mesmo se é verdade que as voltas da vida nos afastaram um pouco mais do que poderíamos imaginar quando éramos pequenas e quase não nos largávamos, a verdade é que mesmo se às vezes nos enervamos ou não nos compreendemos em absoluto, lá no bem  no fundo seremos sempre,  como nos chamavam os nossos amigos da adolescência, "as manas".

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Canções com história(s)


De Luís Represas já falei aqui muitas vezes. Realmente, todos os que me conhecem sabem como ele me é especial, como a sua música encheu a minha vida ao longo dos anos e faz parte da minha história, como com o tempo se tornou um daqueles amigos que parecem estar connosco desde sempre e que sabemos que assim será para sempre. Mas nunca se diz tudo. E nunca, mesmo nunca, me canso de ouvi-lo. Por isso, é raro perder um concerto. 
O de ontem era em versão intimista, no Auditório Carlos Paredes, que pertence à Junta de Freguesia de Benfica, sala pequena, onde cabem apenas cerca de cem pessoas, com o palco quase inteiramente despojado -  apenas uma cadeira, três guitarras e Luís Represas a cantar para nós, com a magnífica voz que Deus lhe deu, o seu sentido de humor e o seu encanto particular.
E para além desta maravilha, que é ouvi-lo assim, como se estivesse na sala lá de casa  - numa versão que me traz muitas memórias de um tempo em que ia ouvi-lo três vezes por semana, religiosamente, num bar de Lisboa, e me enamorei da sua voz, e me deu a conhecer muitos músicos e canções, sul-americanas, portuguesas e brasileiras, sobretudo, e me fez entender o poder transformador da música na nossa vida -, pudemos também saber um pouco mais sobre cada canção, curiosidades, circunstâncias da sua criação, cúmplices de todas as horas e de algumas canções, notas, impressões.
Assim, para além das canções incontornáveis que não podem deixar de fazer parte de cada concerto e entre as quais se incluem "feiticeira", "um caso mais", "perdidamente" ou "125 azul", revisitámos canções que por qualquer razão inexplicável foram ficando um pouco mais de lado, mas nem por isso são menos belas, mais antigas ou mais recentes, além de uma interpretação de "a fuego lento" da canária Rosana, daquelas à Luís Represas, que conseguem ser ainda melhores que o original. E decidiu chamar a este espectáculo, muito a propósito, "ao canto da noite", que é justamente uma dessas canções.
O espectáculo de ontem repete-se nos restantes dias desta semana, pelo que quem não o quiser perder tem mais quatro oportunidades para o fazer (de hoje até Sábado), e apesar de eu poder ser considerada "suspeita", acho que vale muito a pena, porque "é bom e recomenda-se".

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

O regresso da claridade


Por estes dias vivem-se os excessos da época, com umas temperaturas que nos trazem de volta a vontade do que há de melhor no Verão.
Nunca gostei do Carnaval, que sempre achei um exagero despropositado e sem sentido, pese embora aquilo que significa no seu aspecto mais profundamente religioso (por ser o tempo que antecede a Quaresma, com tudo o que isso implica de abstinências carnais).
E, no entanto, o Carnaval tem também para mim um lado aliciante, pois é o que marca a passagem para o bom tempo e traz a certeza da chegada próxima da Primavera, que já se vai  fazendo notar na claridade dos dias a crescer, no brilho do sol a convidar a passeios mais demorados, na vontade de passar a roupas mais leves e claras, nas flores a despontar nos lugares mais inesperados, no canto dos pássaros pelas manhãs silenciosas e tranquilas dos  fins de semana, e na magnífica ideia de tudo poder (re)começar outra vez.
Daqui a nada chega enfim Março, que é o meu mês, com todas as cores, aromas e brilhos que me enchem de felicidade. E regressa a altura do ano de que eu mais gosto, com muita alegria e festejos em grande, como não pode deixar de ser.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O filme dos Óscares


Este ano, tinha alguma  curiosidade em relação ao filme que ganhou os Óscares, mesmo se, em geral, não costumo gostar do filme vencedor. Fui vê-lo, pois,  sem antes ter lido sobre ele, e com um sentimento que  misturava o interesse e a desconfiança. 
O nome do realizador, Bon Joon-Ho, não me dizia nada, apesar de ser esta a sua sétima longa-metragem, assim como também nunca ouvira falar dos actores . Acho, de resto,  que nunca tinha visto um filme sul-coreano. Pois, contrariamente às minhas baixas expectativas, o filme surpreendeu-me muito. Pela positiva. 
Trata-se de uma "sátira social" que rapidamente passa a tragicomédia e que representa com humor e brutal crueza alguns dramas da nossa civilização, em particular as desigualdades sociais e o objectivo de cada um em atingir um nível de vida superior sem olhar a meios, numa engrenagem incontrolável e sem escapatória. 
Além das brilhantes interpretações há, também, talvez sobretudo, o modo como a história nos é contada, levando-nos a criar empatia com as personagens antes de nos sobressaltarmos sobre os seus limites morais e suspeitarmos do possível desfecho.  
Enfim, comédia social ou thriller cruel, este é um filme a ver. Absolutamente...

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Reviver noutra pele


A iniciativa era demasiado arriscada. Porque Brel é único e a sua grandeza e singular excepcionalidade tornam-no intocável. Por isso, mesmo para quem, como eu, conhece e admira o destemor e a versatilidade de Salvador Sobral, havia dúvidas de que ele pudesse estar à altura de tamanho desafio.
Além disso, sendo, como sou, uma fã incondicional de Brel, que conhece de cor todas as letras e  reconhece cada canção aos primeiros acordes, ainda que nunca o tenha chegado a ver ao vivo já que era ainda "pequenina" quando ele morreu, tinha, desde o primeiro minuto em que ouvi falar dele, curiosidade e desconfiança em relação a este espectáculo, em doses quase iguais.
Até aqui, devo dizer, todas as tentativas de cantar Brel que ouvira não tinham feito mais que "assassinar" as suas canções, fazendo horrores à língua e deixando pelo caminho a força, o dramatismo  e a emoção que só Brel lhes conseguia dar.
Dele diria Miguel Torga, no Diário, a propósito do seu desaparecimento em 9 de Outubro de 1978: Morreu Jacques Brel. E estão de luto todos aqueles que sabiam que ele dizia mais aos homens com os seus versos truculentos e as suas canções dilaceradas do que muitos poetas laureados com os seus poemas herméticos. Trovador dos nossos dias (...) foi uma das raras encarnações raivosas do artista empenhado em reflectir o mundo inteiro no espelho da sua própria aflição. E conseguiu-o. Não é apenas um tal, de fisionomia tal e vida tal, que ouvimos quando canta. É uma alma penada em carne viva a penar por todos nós.
Quando vi  a lista de canções que faziam parte do Programa, achei logo que, apesar de "La chanson des Vieux Amants", "Amsterdam", "Les Bonbons" , "Le Moribond" e o incontornável "Ne me quitte pas", faltavam ali "Le Plat Pays" e "Les Vieux", ou "Les Timides e "Une Île".
Como ele próprio confessa,  começar a ouvir Jacques Brel, o que só aconteceu há cerca de dois anos, fez com que Salvador Sobral passasse a encarar o mundo e a vida de outra maneira (...) a minha maneira de perceber a música e a própria vida mudou para sempre. Em Jacques Brel encontrei o equilíbrio perfeito entre a intensidade e a delicadeza, o histerismo e a melancolia, a teatralização e a musicalidade. E as letras, as letras...  (...) Até hoje ainda não sei se Brel era um cantor que escrevia poemas ou um poeta que escrevia canções.
Pois foi tudo isto,  e o facto de se ter entregado durante seis meses ao universo "Breliano", para além da sua genialidade musical e artística, que fez com que a magia do que se passou no CCB, na noite da última sexta-feira, pudesse emocionar mesmo os mais cépticos, entre os quais, confesso, me incluía.
Com um domínio do francês absolutamente irrepreensível, acompanhado por um grupo de bons músicos e cúmplices de aventura, com  instrumentos que incluíam o piano (Samuel Lercher) e o acordeão (Inês Vaz), obrigatórios, mas também as flautas e o trompete (Diogo Duque), a bateria (Joel Silva) e as cordas (guitarra, violoncelo, contrabaixo - André Santos, Ana Cláudia Serrão, Nelson Cascais), levou-nos durante duas horas e dezoito canções num percurso pelo mundo de Brel, que se iniciou com "J'arrive" e terminou com "Madeleine", sem nunca cair na tentação absurda da imitação, mas sem esquecer o seu lado mais teatral e de contador de histórias plenas humor, ternura e acidez, onde até se ouviu em off a voz do próprio Brel, em três ou quatro momentos.
Enfim, do concerto/homenagem a que Salvador Sobral  chamaria "um ritual de adoração ao maior cantador de histórias de todos os tempos", uma forma de "expressar a sua enorme gratidão e admiração pelo legado deixado ao mundo" seria impossível sair-se defraudado, mas antes arrebatado pelo encanto e a emoção de um espectáculo dos que se guardam para sempre na memória, e com a certeza de que, naquela noite, Jacques Brel também passou pelo CCB.      

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

A satisfação da normalidade


Temos o hábito de nos queixar. Mas fazêmo-lo, quase sempre, sem razão. Queixamo-nos da falta de tempo, da falta de dinheiro, dos gestos repetidos no quotidiano,  do frio, do calor, de não podermos fazer tudo o que nos apetece, da política, dos horários, dos transportes e do trânsito, do amor ou da falta dele, de tudo, de nada.
Mas, se pensarmos bem, a "normalidade" de todos os dias  devia ser uma enorme fonte de satisfação, sinal de que tudo corre bem, o que é, sem dúvida, uma benção. Tenho um pouco a ideia de que basta termos saúde para tudo o resto poder fluir.
Porém,  sou como toda a gente. Também reclamo muito, farto-me, e tenho às vezes vontade de poder "fugir" um pouco, ainda que me saiba bem, de igual modo, voltar renovada e capaz de dar valor ao mais banal da vida.