sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

No último dia do ano


Quem me conhece já sabe que não sou dada às festividades obrigatórias (com excepção do meu dia de anos) e que, por isso, não ligo nenhuma a este último dia do ano e às comemorações mais ou menos ruidosas que lhe estão associadas.
Tempo de balanços e de bons propósitos para os dias vindouros, a verdade é que é apenas mais um novo dia a juntar a tantos outros que, todos juntos, vão fazendo a nossa vida.
2021 não deixa muitas saudades. Marcado pela continuação da pandemia em termos globais, foi, ainda assim, um ano de mudanças e de desafios, como sempre, de dolorosas e irreparáveis perdas, de regressos e de conhecimento, de reencontros e de despedidas, de laços consolidados, de amores e amizades da vida inteira, de vacinas e de teletrabalho, de lazer e de viagens (foram nove, apesar das máscaras e dos constrangimentos) e de tantas preocupações e alegrias, emoções, sentimentos e momentos, coisas pequenas e grandes, que me marcaram e modificaram.
Não vivo este último dia do ano em euforia, guardo as alegrias e os festejos para momentos de celebração só meus, mas não posso deixar de fazer como toda a gente e de desejar o melhor (saúde, felicidade, paz e amor) para o novo ano, que começa já amanhã. Que seja bom para todos!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

"Madres paralelas": o talento de um contador de histórias

Sou suspeita: Almodóvar é um dos meus realizadores favoritos e não perco nunca os seus filmes, embora, naturalmente, não goste de todos de igual modo. Não podia, pois, deixar de ver "Madres paralelas", a sua mais recente obra, que valeu a Penélope Cruz um merecidíssimo reconhecimento de "Melhor Actriz" no último Festival de Veneza.
Como quase sempre, as mulheres estão no centro da narrativa, com as consagradas Penélope Cruz e Rossy de Palma, presenças expectáveis e até obrigatórias, muito bem acompanhadas por Milena Smit nos papéis de Janis, Elena e Ana, respectivamente, a representar a maturidade nos dois primeiros casos e a geração millenial, no último.
"Madres Paralelas" é um drama sentimental e histórico, pleno de peripécias dramáticas e de perturbadoras coincidências, mas também da estética fortemente colorida a que nos habituou Almodóvar, que concilia o universo feminino atual nas suas angústias, fortalezas, medos e vulnerabilidades, com os fantasmas do passado franquista e as feridas da Guerra Civil ainda por sarar. E fá-lo com o brilhantismo de que só os grandes contadores de histórias são capazes, tornando-o um filme simultaneamente doce e amargo, simples e complexo, intenso e perturbador, que nos fascina e emociona, como sempre acontece com as obras de arte, sem nunca cair na lamechice pateta, ou no melodrama excessivo. 
Não será o Almodóvar de que eu mais gostei, mas é sempre uma aposta segura e um filme a sugerir vivamente. Recomenda-se muito, pois claro!

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O verdadeiro artista




O Luís Represas faz parte da minha vida, porque a sua voz e a sua música me acompanham desde (quase) sempre, porque me embalou nas horas mais tristes e me aconchegou nos momentos mais felizes - e continua a ser assim- , porque, ao longo do tempo, me tornou a existência mais "llevadera" e porque, apesar de haver muitas outras vozes e canções de que eu gosto, que me comovem e me tocam de forma particular e que eu sinto como se fossem um pouco minhas, o Luís Represas tem, ainda agora, nesse domínio, o lugar principal.
Hoje, é muito mais que um amigo; é uma companhia de todos os momentos, responsável por muitos instantes de pura emoção, daqueles em as palavras sobram e só o sentimento existe, que dão leveza e brilho aos nossos dias.
E é por tudo isto e pelo que não consigo dizer, é, também, porque hoje o dia é todo dele, que aqui deixo a minha gratidão gigante, um abraço de parabéns do tamanho do mundo e o desejo de que possa continuar a (en)cantar(nos) infinitamente.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Um interminável e acalmante silêncio

É sempre em silêncio e em solidão que se "curam" os desgostos, que se saram as feridas, que se vai gerindo a dor, deixando que ela se agudize ou se atenue, consoante os dias, os momentos, as circunstâncias de todo o tipo.

E mesmo quem, como eu, não tem o culto dos mortos no sentido mais tradicional, quem não se revê em visitas a cemitérios, missas "em memória de", ou gestos similares, e acha que é nas recordações que nos enchem o pensamento e o coração que melhor vivem os que já não temos fisicamente connosco, pode em instantes fugazes encontrar nesse silêncio infinito uma apaziguante  serenidade.

Que complexo é afinal o processo de luto, até quando ele se vive em aparente tranquilidade. A mim sempre me impressionaram todos os rituais associados ao fim da vida, sempre me incomodaram os cemitérios, lugares tristes e um pouco sinistros, metáforas maiores da efemeridade e da finitude.  Não é, definitivamente, nestes espaços que me sinto mais próxima de quem já não está, porque sempre achei que é em vida que se dão todos os mimos possíveis e que a melhor homenagem que se pode fazer é lembrar com ternura e emoção todas as histórias e risos, abraços e olhares, palavras e gestos que nos chegam do fundo da memória, através de um cheiro ou de um objecto, de um lugar, de uma palavra, de uma ideia, de uma canção.

Mas se um dia, de repente, contrariando tudo aquilo em que acreditamos, nos apetece sem qualquer razão concreta ir a um desses lugares, então há que ir, mesmo que seja só porque sim, deixar-se envolver pelo silêncio e apenas estar. É que quando a saudade aperta, por mais que nos congratulemos com o tempo que tivemos para estar juntos, todas as hipóteses são legítimas para os continuar a sentir perto de nós e com isso sermos, também, mais fortes e mais capazes de "seguir caminho".

(...) Sentados nele descansamos, escapamos por momentos do frenesim confuso, abrimo-nos ao silêncio e à contemplação ou simplesmente espreguiçamo-nos ao sol, de olhos fechados, a sentir o odor de um tempo reencontrado. Visto de um banco de jardim, o mundo parece ganhar uma fisionomia diferente. Abraçamos margens esquecidas da vida, escutamos zonas periféricas, mas necessárias, olhamos o colorido de outras vozes. E percebemos que a alegria se aproxima de nós como uma folha trazida pelo vento.

(José Tolentino de Mendonça, O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas)

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Regresso à "normalidade"


Retomar o trabalho presencial ao fim de um ano não deixa de ser uma estranha sensação, em muito semelhante à do primeiro dia de aulas. É de novo o toque do despertador quando ainda está escuro lá fora e o Outono já vai fazendo notar a sua presença, são os transportes ainda não muito cheios, é um sem fim de rotinas e de gestos recuperados depois de uma longa interrupção.

Quase tudo "normal", ou talvez nem por isso. Para mim, que sou uma grande defensora do teletrabalho, este sistema que mistura os dois mundos, é a maneira suave de voltar à vida de antes, e dá-me a possibilidade de ir aproveitando o que há de bom nas duas maneiras de funcionar.

Com Outubro a chegar ao fim e a mudança para a hora de Inverno de amanhã, chegam novos tempos de roupas mais quentes, dias mais sombrios e vontade de aconchego. Tudo no seu sítio, claramente.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

O poder da música



Foi um fim de semana de sentimentos fortes, que me trouxe a certeza de que ao vivo a emoção é sempre maior e que a música tem essa fantástica força, que é também magia, de aproximar as pessoas, de sarar feridas e de tornar a vida ainda mais bonita.

 Fotografia de Verónica Méndez López

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Virar a página e seguir

 

Foram três meses de dias atarefados e intensos, cheios de emoções e de papéis, de assuntos a tratar e de sentimentos  por gerir,  na surpresa absurda do que fica para lá do fim e na certeza de que o tempo não pára e que a vida segue sempre o seu caminho, inexoravelmente.
E, no entanto, não houve um só dia em que uma imagem, uma palavra, um pensamento ou uma canção não me levassem de volta ao tempo de estarmos juntas, às nossas conversas e risos, a tantas cumplicidades tão nossas. Nem houve nenhum passo ou decisão que tenha tomado sem pensar primeiro no que diria, ou na forma de a fazer sentir-se orgulhosa de mim.
Mas, como diz uma amiga minha "não tenho vocação para o martírio"; e, por isso, talvez, valorizo mais o que vivemos juntas, a alegria de nos podermos ter tido durante tantos anos, que guardo comigo para sempre, do que a inevitável saudade, ou a dor da perda. 
Há, naturalmente, risos, e olhos, e colos que não se esquecem, e é essa a glória  da imortalidade: o que dos nossos sonhos e anseios, de tudo o que fomos e quisemos, perdura nos outros, para além de nós. E há, também, a tranquilidade de saber que fiz sempre tudo o que esteve ao meu alcance, multiplicando cuidados e carinhos para que se sentisse aconchegada, amparada e feliz, sobretudo nos últimos anos e nos momentos de maior fragilidade, em que lhe segurei a mão e lhe devolvi em amor e mimos grande parte do que me deu, a vida toda.
Há quem diga que se sai sempre melhor de uma dor, ou de um desgosto. Pode, talvez, ser verdade. Depois do silêncio, de um tempo em que parece que todas as palavras fogem ou deixam de fazer grande sentido, começa o tempo da aceitação.  Porque aceitar que a morte faz parte da vida é, provavelmente, a mais difícil e dolorosa aprendizagem com que vamos sendo confrontados. 
Dos que partem ficam as recordações, as ideias, as acções, os ensinamentos e tudo o que de bom e mau fomos vivendo ao longo do tempo, fica a marca fortíssima e indelével que deixam em nós. É com ela que vivo. E julgo  que essa será a mais bonita e singela forma de a continuar a ter pertinho de mim, no pensamento e no coração. É bom saber que, entre nós, pode o amor modificar-se, mas será sempre, sempre, infinito. E ir aprendendo a viver com esta nova realidade, que não é melhor nem pior; é só diferente.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

O inconcebível mundo das traduções


Que um filme que se chama no original Antoinette dans les Cévennes apareça no cartaz nacional com o inacreditável título de "O meu burro, o meu amante e eu" pode fazer toda a diferença, já que à partida parece sugerir um daqueles filmes completamente estúpidos a que eu chamo "comédia alarve", do género de "Um sogro do pior", que não me distraem, nem divertem, nem nada.
Não é de todo o caso aqui. Antoinette das les Cévennes é um filme delicioso, terno e divertido, daqueles que sem pretensão alguma nos dispõem bem e nos entretêm durante duas horas. Dizer que é uma "comédia romântica" é também uma classificação de certo modo redutora, pois embora esse seja o ponto de partida, o filme é muito mais que isso. 
Inspirado num livro de Robert-Louis Stevenson "Viagem com um burro pelas Cevenas", de 1879, que relata a travessia feita pelo autor por esta cadeia montanhosa do centro-sul de França, que faz parte do Massif Central, acompanhado por uma jumenta chamada Modestine, o filme retoma esse mesmo percurso, desta vez feita por uma mulher e por um burro chamado Patrick, numa viagem cheia de divertidas peripécias, com Laure Calamy no papel de Antoinette, que é também o retrato de uma mulher independente e sensível, entusiasta e impulsiva, que não se deixa abater pelas contrariedades do caminho nem da vida e que nesse encontro consigo e  com a natureza tendo por companheiro apenas Patrick, o burro, ouvinte silencioso e atento das sua reflexões sobre os amores e a existência, redefine o rumo a seguir com o novo olhar sobre si que a introspecção lhe proporciona.
Pouco importa, pois, que esta seja a segunda longa metragem da realizadora Caroline Vignal (com 20 anos de diferença da primeira), ou que os actores não sejam muito conhecidos. Com muitas situações cómicas, bons diálogos e magníficas imagens das Cévennes, este é um filme leve e despretensioso, mas que vale a pena ver. Eu gostei. Muito.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

(Re)centrar-se

 
Há  acontecimentos da nossa vida que marcam para sempre, que nos fazem repensar(nos) , começar de novo, alterar focos e preocupações, objectivos ou anseios.
Os momentos de dor podem, pois, ser também de certo modo redentores, já que implicam rever todas as prioridades e sermos capazes  de seguir caminho,  com tudo o que aprendemos e nos fez amadurecer.
Enfim, para lá de todas as tristezas, mágoas ou pesares, há que continuar a acreditar que apesar dos dias e horas de solidão e desamparo, sai-se de um desgosto uma pessoa diferente, mas não necessariamente pior, que as as feridas e vulnerabilidades não são um sinal fraqueza, que as cicatrizes podem até tornar-nos mais fortes, e que são  os que amamos e também gostam de nós, onde quer que estejam e façamos o que fizermos, que estão sempre connosco a fazer do nosso caminho um tempo e espaço para ser feliz e acreditar que nada acontece por acaso e que tudo vale a pena: o bom e o mau, o alegre e o triste,  o fácil e o difícil que vai aparecendo ao longo do percurso e que temos que saber aceitar e agradecer como nos chega, porque a vida não é só risos, alegria e felicidade e porque é provavelmente nessa variação entre claro e escuro, dia e noite, sombra e luz, que ela se nos revela ainda mais bonita e valiosa.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Uma cidade ao pé do mar



Às vezes parece que todas as palavras fogem para um lugar escuro, fundo e distante onde as emoções se vivem apenas em silêncio e solidão. 
Estou nessa fase meio melancólica, virada para dentro, entre lembranças e tranquilidade, sozinha comigo e com os meus pensamentos, vontades, desejos, sensações, pousando os olhos por momentos na maravilhosa vista da minha janela, ou na calma quietude do mar de Verão.
É, por agora, o que serena o meu coração inquieto, que ora se acelera, ora está em paz, bendizendo a graça de poder viver assim; e ser feliz; porque a saudade também pode ter um lado bom, e porque por maiores que sejam as nossas feridas e mágoas são as cicatrizes que nos fazem crescer e sentir que, no fundo, tudo vale a pena.

sábado, 26 de junho de 2021

Uma Rainha (republicação)




Para o bem e para o mal somos sempre marcados por quem nos dá a vida. São os primeiros braços que nos abraçam e embalam, o colo que nos aconchega, a voz  e o olhar que nos ensinam o mundo e guiam o caminho. Habituamo-nos assim a um amor e apoio incondicionais e a um presença forte e serena, que julgamos poder durar para sempre, sem sequer pensar nisso.
Depois desentendemo-nos e discordamos, porque também há uma idade própria de ser assim.
Mas hoje sei a quem devo a maior parte do que sou, sei da honra e da dignidade a sobrepor-se aos inevitáveis erros a que ninguém escapa, porque somos humanos, falhamos e sofremos; sei da coragem de optar pela generosidade e a alegria, quando teria sido bem mais fácil cruzar os braços e desistir, ou escolher o caminho da amargura e do cansaço. Foi no bom humor, no riso e na limpidez dos seus olhos verdes que aprendi o lado bom de todas as coisas; e herdei essa vontade imensa de aceitar e aproveitar muito bem o que nos chega, como o que fazemos chegar.
Aos noventa anos, mesmo quando se é apenas uma sombra do que se foi um dia, perde-se a pose, o corpo verga-se, provavelmente sobram poucas memórias de um percurso muito longo e muito cheio, mas fica tudo o que se construiu e o reflexo do efeito que se provocou nos outros. 
Perdem-se os gestos e as palavras, mas ficam as emoções e os afectos, que transparecem ainda em olhares cúmplices e silenciosos, em risos fortuitos, em esboços de mimos, em prazeres simples e antigos: nas mãos que se tocam e se apertam, na delícia de saborear uma madalena, e em tudo aquilo que ainda nos mantém junto dos que amamos. E até talvez felizes...
Chegar aos noventa é só mais uma vitória. Por isso,  se pudesse, hoje, coroava-a rainha. E concedia-lhe o dom da infinitude.

(Este texto foi escrito há exactamente seis anos. E hoje, quando por quinze dias já não chegou aos 96, decido republicá-lo, porque continua a ser inteiramente verdade e porque, mesmo se já não podemos abraçar-nos e rir-nos juntas, no meu coração o nosso amor será sempre infinito).

segunda-feira, 17 de maio de 2021

De volta ao cinema


Se a Netflix vai sendo útil em tempos de confinamento, poder ir ao cinema é, de longe, outra coisa. Para mim, nada como magia do écran gigante, da sala escura e dessas duas horas em que nos deixamos transportar por histórias e vidas que, não sendo nossas, tantas vezes nos removem por dentro e nos fazem pensar.
Que bom, pois, poder voltar a um dos minhas paixões, com a benesse de agora nem sequer se poder comer ou beber nas salas, o que é claramente uma vantagem.
Optei pelo filme dos Óscares. Nomadland é, como seria de esperar, um filme triste. Mas poético, ainda assim. É um filme simples e complexo, bonito e áspero, com todas as contradições que marcam a existência, que trata de liberdade e de solidão, de precariedade e de incerteza, de morte e de vida, misturando ficção e realidade: Fern, a personagem principal, é fictícia, mas convive com nómadas reais que se interpretam a si mesmos, como Linda May, ou o mentor Bob Wells. Trata-se, no fundo de uma viagem por uma América um pouco diferente da que costumamos ver, ou que temos como representação mental, ao lado dos que escolhem a liberdade de ser e de fazer diferente, ou não têm outra possibilidade que não seja a de viver assim. Frances McDormand é excelente no seu papel de protagonista e também de fio condutor da narrativa, elo de ligação perfeito entre as várias histórias/vidas com que se cruza "down the road". 
O filme vale bem uma ida ao cinema, mas não sei se é assim tão excepcional para ser designado como "o melhor". Se calhar, a concorrência é que não era grande coisa. Mas, quanto a isso, não sou, por enquanto, capaz de ajuizar.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

9 anos


O meu blogue é  quase adolescente, já que faz hoje 9 anos. Quem diria!... 
Quando o comecei, estava longe de imaginar que pudesse chegar tão longe e durar tanto tempo. E mesmo se, com o tempo, o entusiasmo inicial esmoreceu um pouco, tanto dias e horas depois posso dizer que me sinto orgulhosa das 1334 publicações de todos estes anos.
A todos os que por aqui vão passando, mesmo silenciosamente, muito obrigada por estarem desse lado.
E, parafraseando Jorge Palma, apetece-me dizer, também: "enquanto houver estrada para andar/a gente vai continuar."
 

domingo, 2 de maio de 2021

Amor maior



Sei bem como este dia sempre foi importante para ti. Talvez porque ser mãe foi o teu maior sonho e desafio, o teu melhor projecto e a tua razão de existir. Por isso te deste inteira, entregando-te de alma e coração, mesmo que aqui e ali possam apontar-se erros e sombras no percurso, já que é humanamente impossível escapar-lhes, por melhores que sejam as nossas  ideias e intenções. Sei, ainda assim, que te orgulhas da tua "obra" e acho, modéstia à parte, que tens razões para isso.
Lembro-me de como costumavam ser grandiosas as nossas comemorações, das infalíveis flores da florista "Malmequer", dos postais com palavras doces e queridas, dos almoços à beira-rio em restaurantes que já nem existem, e de tardes inesquecíveis de passeios, de risos, de conversas, de mimos, de cantigas desafinadas e outras parvoíces, próprias da cumplicidade única que só existe entre mãe e filha. 
Hoje, muita coisa mudou e já não pode ser como era, mas o nosso amor segue igual, sólido e invencível, para lá de todas as contrariedades e contingências, resistente ao tempo, ao espaço e até à pandemia, que só no ano passado não permitiu que nos víssemos. E, apesar de tudo o que agora é diferente, continua a ser uma sorte e uma felicidade ter-te ainda do lado da vida. 
Por isso, hoje, todas as flores de todos os jardins são para ti. E será sempre pouco, face ao que tu me deste a vida toda e continuas a dar, todos os dias.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Férias férias férias



As primeiras férias de cada ano têm sempre um sabor especial, ainda mais agora que estamos todos fartinhos de confinamentos e clausuras. Por isso, por mais pequenas que sejam, nada como um pouco de arejamento e mudança de ares para ganhar novo ânimo.
Gosto de férias sempre, mas não dispenso as da Primavera, que são de longe as minhas preferidas, não sei se por serem as primeiras, se por gostar tanto da estação, ou tudo junto. Este ano, os estados de emergência e os números pouco animadores sobre a evolução da pandemia empurraram-nas do início de Março para o final do mês de Abril, o que faz com que sejam ainda mais desejadas.
E há lá coisa melhor que interromper os gestos e os hábitos de todos os dias, deixar de lado horários e obrigações, poder usar o tempo a bel-prazer e ir por aí, com a sensação de liberdade, como se de repente  fossemos donos de nós e do mundo e nada fosse impossível. 
Sinto muitas vezes a necessidade de partir assim, em saídas curtas que me permitem sentir outros cheiros e ver outras vidas, deleitar-me diante do mar, caminhar pelas cidades que amo, ou pelas que não conheço ainda, reparar em todos os detalhes, ver, experimentar, aprender. E depois, então, voltar, mas revigorada, reconfortada, em paz. Tão bom!...

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Tempo(s) de contenção




Vivemos, hoje, um tempo em que olhamos desconfiados uns para os outros. Tememos a proximidade, mesmo quando a desejamos mais que tudo, e hesitamos entre ceder à vontade do toque ou refrear vontades, guardando-as para tempos mais propícios e isentos de medos e limitações; reduzimos anseios ao mais imediato, sem saber o que esperar do que vem já a seguir; moderamos os gestos e os movimentos, na prudência e na sensatez de quem tem que aprender a viver de outra maneira, por força das circunstâncias.  E assim vamos deixando passar os dias, esperando poder enfim voltar ao que era dantes, como quem acorda e descobre que afinal foi só um pesadelo, desejosos de retomar a vida no ponto em que a deixámos quando eramos felizes sem o saber, quando os afectos se viviam sem apreensão, na sua espontânea irracionalidade, em todas as vezes que  sentimos que é no toque da pele que melhor nos entendemos, que compreendemos que é nos instantes em que os corpos se encontram e os sentidos se confundem que tudo faz verdadeiramente sentido, e é emoção pura, sem precisar de palavras...

Vivemos agora na incerteza, na ansiedade e no desânimo, mas não podemos deixar que eles nos vençam.  Há, ainda, no coração indomado e inquieto, a intuição e o desejo secreto de que o que quer que venha a ser o que virá será bom, marcado, como sempre,  pelo  afecto e a cumplicidade, que se destapa a espaços na emergência do corpo que se deixa levar pelo amor, no despropósito do que às vezes se faz presença real e proximidade total, sem querer saber de depois, para logo voltar à realidade, e se ocultar, e reprimir, agora sim, agora não, num turbilhão das sensações imoderadas e sensatas de querer prender e soltar, de ser tudo e não ser nada, simultaneamente.

Ensinam-nos tudo sobre o corpo e a cabeça, mas não sabemos nada sobre a emoção, o sentimento e o desejo. Não apenas o desejo concupiscente, que é ao que ele é por norma reduzido, mas o desejo lato sensu, que é muito mais vasto que isso, que domina a nossa vida de maneira diversa e muito, muito, abrangente.  E, ainda assim, apesar das todas as dificuldades  que nos limitam e condicionam, há que saber quem nos importa e o que nos faz falta, readaptarmo-nos, e aproveitar o que a vida tem de bom, assumir vontades, não se escusar  nunca ao prazer, nem ao que nos faz mesmo felizes.

quarta-feira, 31 de março de 2021

Abatimento e inquietação


Era como um não sei quê que vinha não sei de onde e às vezes se lhe instalava no peito e lhe ensombrava a vida. Não sabia se era cansaço, desânimo ou apenas tédio, aquela espécie de tristeza que em certos dias parecia assumir proporções disparatadas, sem que houvesse para isso uma justificação plausível, concreta, satisfatória, legítima, ou acertada.

Era uma angústia que lhe apertava o coração, era a vontade de se virar para dentro em silêncio e solidão e, ao mesmo tempo, impedir que aquele desconsolo se estendesse em tempo e espaço; era  a indecisão entre desatar as lágrimas e não precisar sequer de chegar a elas, uma consumição sem razão aparente, que tornava certos dias mais baços e difíceis de levar.

E, apesar dos pesos na consciência, do remorso e das voltas que desse à cabeça pensando que, não havendo na verdade motivo para se sentir assim, podia isso ser considerado desfaçatez ou ingratidão, havia que permitir-se, também, de vez em quando, viver um desgosto sem porquê, porque a vida não é só risos, felicidade e alegria, vai antes alternando entre luz e sombra, claro e escuro, dia e noite.

sábado, 20 de março de 2021

Enfim, a Primavera


Quando chega a Primavera, muda tudo: a minha disposição, desde logo, a cor e o cheiro dos dias, sempre a crescer em mais horas de sol, a vontade de andar na rua com roupas mais leves e coloridas, de passear pelo mundo inteiro, a temperatura que fica mais amena e agradável, o regresso da alegria e da felicidade.

Nesta altura, lembro-me sempre daquela maravilhosa descrição da chegada da Primavera vestida de luz, de cores e de alegria, olorosa de perfumes sutis, desabrochando as flores e vestindo as árvores de roupagens verdes" na história de Jorge Amado "O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá": quando a Primavera entrou pelo parque adentro, num espalhafato de cores, de aromas, de melodias. Cores alegres, aromas de entontecer, sonoras melodias. O Gato Malhado dormia quando a Primavera irrompeu, repentina e poderosa. Mas sua presença era tão insistente e forte que ele despertou do seu sono sem sonhos, abriu os olhos pardos e estirou os braços.

É mais ou menos isto que eu sinto que a Primavera me faz. É uma espécie de renascer, como se tudo começasse de novo outra vez. A partir de hoje, são três meses bons, de possibilidades infinitas, em que melhora a disposição e tudo se anima e brilha mais, e cresce a vontade de fazer imensas coisas, na luz do sol sem excessos, na claridade dos dias cheios de cores e perfumes fortes, de sorrisos radiosos e de momentos perfeitos de puro prazer. Por mim, podia ser Primavera o ano inteiro.

domingo, 14 de março de 2021

Voltar às minhas cidades


Por muito que eu goste de Lisboa - e adoro! - faltam-me Paris e Sevilha, como me falta Nice, ou Madrid, San Sebastián ou Strasbourg, e todas as cidades que eu amo e onde sempre me apetece voltar. Faltam-me, também, todas as  que ainda não conheço (e são tantas...): Veneza, desde logo, ou  Praga, ou Valência, ou Lyon, Buenos Aires, Copenhaga e sei lá que mais.
Há mais de um ano sem poder sair daqui, tenho aproveitado para conhecer melhor o meu país e para percorrer de lés a lés  minha cidade, que nunca me cansa e, como as outras, me parece inesgotável nos seus encantos.
Mas não posso deixar de sentir uma enorme saudade do frenesim dos entardeceres espanhóis, da calma do Jardin du Luxembourg, de me sentar junto ao Guadalquivir, de ouvir flamenco ao vivo, de ir ao Mercadona e ao Gibert Jeune, de ir ao Rocío e de beber um "rebujito" ou um "tinto de verano", de me demorar na esplanada do "Café de la Paix", de ouvir e falar outras línguas e de me sentir em casa, mesmo em lugares onde na verdade sou  "estrangeira".
E apesar de não poder deixar de me considerar uma privilegiada em tudo isto que vivemos no último ano, sonho cada vez mais com o dia em que possa outra vez ir por aí, entusiasmada e expectante, enchendo a alma de novidade e observando tudo nos mais pequenos detalhes. 
Conhecer cidades novas, ou regressar àquelas de que mais gosto é, sem dúvida, para mim, o lado mais interessante das viagens. É isso que agora vai ganhando cada dia mais espaço no meu pensamento e na minha vontade; e espero ansiosa o dia em que  possa enfim voltar a deixar-me encantar por elas.
 

domingo, 7 de março de 2021

Primeira(s) vez(es)


O primeiro olhar sobre o mundo. O primeiro choro. O primeiro colo. O primeiro toque. A primeira palavra. O primeiro passeio. A primeira gargalhada. A primeira casa. O primeiro dia de escola. A primeira Comunhão. O primeiro amor. O primeiro beijo. A primeira vez. As primeiras férias sem a família. A primeira viagem a Paris. O primeiro dia de trabalho. O primeiro desgosto. A primeira ruga. O primeiro desafio. A primeira escolha. O primeiro fracasso. A primeira conquista... 
De quantas primeiras vezes é feita a nossa vida? Desde esse primeiro dia 7 de Março, há muitos anos, quantas primeiras vezes já me aconteceram? É a soma do irrepetível e da novidade de cada  primeira vez, e em todos os gestos, momentos, acontecimentos, sensações e sentimentos simultaneamente iguais e diferentes que se vão sucedendo ao longo de dias e anos,  - o primeiro café do dia, o primeiro banho de mar, o primeiro dia de Primavera de cada ano, o regresso dos dias quentes, o retomar de um sonho adiado e tantas outras coisas -, que vão fazendo parte de nós e da nossa vida, marcando-a e marcando-nos para sempre.
E eu, que sou dada a celebrações "por todo lo alto", como dizem os meus amigos espanhóis, este ano, pela primeira vez, não vou poder reunir as pessoas de que mais gosto, e os abraços e beijos serão sobretudo feitos de olhares, de gestos significativos, ou de palavras. Mas, mesmo diferente, não será por isso que este  não será também um dia de festa: a MINHA, pois claro!

segunda-feira, 1 de março de 2021

O bom tempo, a Primavera e tudo


Dias cada vez maiores, sol, bom tempo, vontade de se deixar ficar na rua, de soltar o cabelo ao vento, de aproveitar a brisa da tarde, de passear despreocupadamente. Março é isto tudo. Se lhe associar uma cor, será azul claro como o céu e o mar e amarelo como o sol e as flores dos meus anos. Além desta festa de luz de alegria e de recomeço, Março é também o mês dos meus anos. E por tudo isso gosto tanto dele. Gosto do perfume destes dias, do cheiro das frésias e do sabor dos morangos, das pequenas flores que vão enchendo árvores e jardins, de ouvir cantar os pássaros e dessa promessa de felicidade renovada que este ano, se calhar, faz ainda mais sentido.
Quero acreditar que nesta Primavera vamos poder renascer deveras e voltar a uma vida mais próxima do que consideramos normal. Março começa hoje, como sempre a saber a princípio, a vida e a festa.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Dia de Carnaval


Sou uma daquelas pessoas que não acha nenhuma graça ao Carnaval, nem a qualquer outro festejo "obrigatório". E sou assim desde sempre. Quando era criança não achava piada às máscaras e sempre me pareceram um pouco ridículas todas as alegrias forçadas.

Mas, sinceramente, quem é que se lembra que hoje é Dia de Carnaval, nestes tempos tão atípicos que vamos vivendo? Quem é que tem vontade do que quer que seja para além da possibilidade de recuperar uma certa normalidade (que esperemos que não demore muito), com tudo incluído, até mesmo, porque não, o Carnaval?

Até lá, só podemos encher-nos de paciência, esperar e, apesar de tudo, agradecer o que temos.


domingo, 7 de fevereiro de 2021

Capitão Von Trapp


Para a minha geração, para muitas outras, decerto, Cristopher Plummer, será para sempre o Capitão Von Trapp. Pode ter, ao que parece, ganhado um Óscar, já tardio, ter tido uma carreira cheia de prémios e sucessos, mas a personagem do filme de Robert Wise, de 1965, colou-se-lhe à pele como uma tatuagem, perseguiu-o a vida toda e será por ela que sempre será lembrado.

Goste-se ou não, para quem tem mais ou menos a minha idade, o filme The sound of music ("Música no Coração", em português) marcou a nossa infância e até um pouco para além dela, nem que fosse porque passava repetidas vezes na televisão, especialmente na tarde do dia de Natal. Lembro-me muito bem de o ter visto pela primeira vez, teria uns cinco ou seis anos, no cinema Tivoli, e de essa ser uma das minhas mais antigas memórias cinematográficas.

Como esquecer, pois, aquele capitão austríaco, tão austero, que se revela depois sensível e apaixonado pelo poder transformador do amor e da música. Como esquecer Julie Andrews e o seu grito The ills are alive with the sound of music, objecto de inúmeras piadas e tantas private jokes que nos acompanham desde sempre. Como esquecer as canções daquele filme mítico que faz parte das nossas vidas?

Cristopher Plumer morreu esta semana. Mas o Capitão Von Trapp permanecerá inesquecível para mim, para nós, e seguirá no nosso imaginário, a cantar de forma doce, quase pueril, Edelweiss:


Edelweiss, Edelweiss
Everymorning you greet me
Small and white, clean and bright
You look happy to meet me

Blossom of snow may you bloom and grow
Blooma and grow forever
Edelweiss, Edelweiss
Bless my homeland  forever

domingo, 31 de janeiro de 2021

Para lá do imediato


E às vezes, o silêncio estremece 
Como se fosse a hora de passar alguém
que só hoje não vem

Não se deixar vencer pela melancolia. Esse era o mote. Sempre estivera  na sua natureza encontrar o lado bom de todas as coisas e não se permitir estar triste por muito tempo. Aprendera a calar a dor, a vivê-la para dentro ou a relativizá-la, como se alimentá-la ou exibi-la fosse um sinal de ingratidão diante de tanto  que a vida lhe dava.
Por isso, agora também tinha que ser assim. Para lá dos dias que passavam demasiado lentos e cinzentos, acreditar. Por aqueles dias, em Espanha, mais precisamente em El Rocio, viver-se-ia mais uma festa da Candelária. Se tudo fosse normal, por esta altura estaria também a planear passeios e viagens para o ano inteiro, visitas a cidades novas e às antigas, que trazia sempre no coração, ou a inventar comemorações em grande para mais um aniversário a pouco mais de um mês de distância.
E se lhe parecia às vezes que tudo era só inquietação e desamparo, se prevalecia a nostalgia, a tristeza e o desencanto incerto dos dias e horas por viver, se muitas saudades lhe doíam no peito, não podia deixar de pensar no privilégio de uma vida ainda assim segura e tranquila, quando tantos sofriam e se afligiam muito mais e por tantas razões de peso; e logo procurava mil afazeres e ocupações na esperança de ignorar ou esquecer as perguntas e  preocupações que lhe atravessavam a alma durante as horas tão imensamente vagarosas daqueles dias.
Outras vezes, pensava que, mesmo de forma passageira, mesmo sem motivos demasiado fortes, podia a espaços entregar-se ao desgosto, desatar as lágrimas só porque sim e, em silêncio e solidão, desalmadamente, chorar. Então, virava-se para dentro, encolhida e calada, deixando a tristeza e a música embalar-lhe aquele buraco enorme que a deixava mais desprotegida e indefesa, sem serem precisas muitas lágrimas, nem dramas, nos momentos em que muita coisa íntima se desatava de repente, entre o deslumbramento ante a ideia romântica de se ser dono da sua vida e os momentos em que só se deseja um colo onde repousar a cabeça, ou o calor reconfortante de uns braços que acolham uma fragilidade repentina.
E logo refeita, sorria, na alegria serena de imaginar que entre o que fomos e o que está por vir, enquanto o coração bate no peito, há muita vida pela frente. E que, acima de tudo, é preciso ter calma. Sempre... 
Olhava pela janela e procurava a paz no azul do céu (sempre fora essa a sua cor) para se sentir em harmonia com a vida. No fundo sabia que era normal tudo ser assim, um percurso lento, feito de altos e baixos, de avanços e retrocessos, de esperança e de desânimo. Mas que haveria uma luz ao fundo do túnel e que, de tudo aquilo, se sairia decerto renovado e engrandecido. E redescobriria, assim, de forma mais clara, a  importância do amor verdadeiro e da companhia, o valor de abraçar quem se gosta com força, na felicidade de instantes vividos na serenidade de quem se quer bem e de vontades em sintonia.

(Fotografia de Luísa Correia, do Blogue "À Esquina da Tecla")

domingo, 24 de janeiro de 2021

Entrincheirados


Olhava pela janela e na rua não havia quase ninguém. Casas, muitas casas, prédios mais altos ou mais baixos, amarelos, brancos, azuis, cor de rosa e verdes, todos de telhados vermelhos, o típico daquela cidade cheia de sol e de luz, de onde parecia que a vida se arredara de repente. 
Para lá das paredes, portas e janelas de todos os edifícios maiores ou menores, estavam todos fechados, perdidos, virados para dentro, à espera de poder escapar de um pesadelo que parecia durar  há já demasiado tempo e não se sabia quando poderia enfim terminar. Parecia que tudo tinha voltado ao início e que desta vez era ainda pior. As notícias eram assustadoras, os números cresciam sem parar, a cada dia, a cada hora, e por todo o lado soavam palavras pesadas como catástrofe, aflição, calamidade, doença, morte, sofrimento, dor.
Havia dias em que só o medo, a solidão ou a incerteza pareciam tomar conta de tudo, por mais que se procurasse relativizar e pensar no privilégio de estar ainda assim em segurança, no conforto quente da casa, transformada em fortaleza e porto seguro, onde na verdade não faltava nada que fosse essencial, quando tantos outros se debatiam na angústia de um limiar qualquer, fosse ele entre a vida e a morte, a difícil escolha de condenar ou salvar, a exaustão extrema e o sentido do dever, o desânimo e a coragem.
No fundo, mesmo quando sentia uma saudade apertar-lhe o peito, quando lhe faltava o toque e a voz de quem lhe era mais  querido, quando o silêncio lhe enchia a casa e a vida, acreditava que a Primavera haveria de voltar esplendorosa, como sempre,  e que a vida haveria de conseguir sobrepor-se e vencer.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Abstenção?


Por princípio sou contra a abstenção. Porque acho que votar é um direito, mas é também um dever, ao qual, a não ser por circunstâncias excepcionais, não temos nunca que nos escusar. Talvez isso tenha a ver com uma característica minha que, num certo sentido, pode mesmo ser considerada defeito: sou muito opinativa e gosto até, às vezes, de dizer o que penso mesmo sem me perguntarem.
Quando se trata de eleições (sejam elas quais forem), participar parece-me antes de tudo uma espécie de "obrigação". E, por isso, não concordo nada com os que dizem que "abster-se" também pode significar que nenhum candidato é suficientemente bom, ou qualquer coisa deste género. Quando acho isso (o que é de resto bastante frequente, hélas), tendo a optar pelo voto útil, escolhendo o "menos mau". Não fazer nada, não participar, parece-me sempre uma espécie de desistência, como se o que está em causa não nos dissesse respeito.
Não me lembro de alguma vez na vida ter sido chamada a participar numa decisão e ter optado por não o fazer. Só por não me apetecer. Só porque sim. Mas desta vez é diferente. Porque a conjuntura em que as eleições acontecem é absolutamente fora do comum e me parece absurdo, num contexto de confinamento quase total (pelo menos na versão oficial), abrir-se um parênteses de um dia e podermos juntar-nos todos de novo para uma eleição que está decidida à partida.
Enfim, vou ter que pensar melhor no assunto; e tenho uma semana para o fazer...

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Fim das Festas

Tenho pena que em Portugal não se celebre o Dia de Reis como acontece em Espanha e em França, por exemplo, e que este dia, que é afinal o que assinala o fim das festas seja, entre nós, um dia como outro qualquer. 

Em Espanha, a ideia de fazer coincidir a troca de presentes com o Dia de Reis confere a este dia uma magia e encantamento que, para mim,  se aproxima muito mais do que se celebra nestas festas. E mesmo se, por causa da pandemia, não há este ano a "Cabalgata de Reyes", a que costumo sempre assistir pela televisão, este é um dia que permite viver a emoção de regressar ao  mundo de ilusão da infância e de, por momentos, voltar a acreditar num mundo melhor. 

A comemoração do Dia de Reis, de tradição cristã, baseia-se numa passagem do evangelho de S. Mateus, (capítulo 2, versículos 1 a 12), a qual terá dado origem à criação da lenda dos três reis magos e, impôs, posteriormente,  o costume dos presentes no Natal. Pouco importa a veracidade da história, tantas vezes posta em causa, por não haver, em Mateus, nenhuma informação que permita concluir  sobre a realeza das personagens; e o mesmo quanto ao seu número e aos nomes de Belchior, Gaspar e Baltazar, com que nos habituámos a designá-los, desde aquele longínquo momento da infância em que a ouvimos contar pela primeira vez. 

De acordo com a tradição católica, 6 de Janeiro é o dia da Epifania, uma das celebrações litúrgicas mais antigas, que se refere à revelação do Menino Jesus ao mundo pagão, representado pelos Reis Magos. E há qualquer coisa de verdadeiramente poético na ideia daquela viagem solitária e demorada, em camelo, através do deserto, apenas guiados por uma estrela, que os iluminava e lhes indicava o caminho. 

Amanhã, já se sabe, é dia de arrumar os presépios e todas as decorações natalícias e de deixar o ano retomar o seu curso habitual, esperando que os dias que aí vêm decorram sem sobressaltos e sejam bons de verdade.