quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Falar em público


Termina hoje o curso da Faculdade de Letras e, ao fim da tarde, vou ter que apresentar o trabalho. Quantas vezes na vida já me vi neste tipo de situação? Foram tantas que nem sei...
Há muito tempo atrás, quando era criança e mesmo adolescente, era francamente tímida. Mas, na verdade, por força da minha profissão e de tantas outras coisas por que passei, aprendi a perder toda a espécie de vergonhas, ou pelo menos sei como ocultá-las e não tenho, agora, problema algum em falar em público.
Aliás, se por acaso ouso dizer: "Eu sou tímida", ouço repostas que variam entre a gargalhada imediata e expressões como: "És, és! É o que tu és mais!..." Apenas as pessoas que me conhecem mesmo muito  bem conseguem concordar que conservo ainda uns restos dos embaraços e acanhamentos de outrora.
De facto, habituada a estar dias inteiros diante de turmas mais ou menos numerosas e a ser observada com o rigor crítico de quem não deixa escapar o mais pequeno detalhe; ou depois de anos a coordenar o Departamento de Línguas, constituído por cerca de trinta indisciplinadas professoras verdadeiramente dífíceis de aturar, tomar a palavra diante de desconhecidos já não me causa grande nervosismo, nem ansiedade.
E, no entanto, não me apetece nada ter de passar hoje por esta prova. Talvez porque o meu lado mais perfeccionista me impede de me sentir absolutamente satisfeita com o trabalho, que a falta de tempo não me permitiu aprofundar como eu gostaria. Mas lá terá que ser... E tenho a certeza que, como sempre, apesar da falta de vontade, quando chegar a hora, farei o melhor que posso e sei.
Ainda assim prefiro os grupos mais restritos, considero-me uma óptima ouvinte, admiro os que têm o dom da palavra e são excelentes comunicadores.
E o que eu adoro mesmo e não dispenso, por nada, é uma boa conversa a dois. Em privado, portanto!...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Liberdade



Às vezes preciso de sair da rotina, de ficar a sós comigo e de reencontrar o equilíbrio e a tranquilidade no silêncio quieto de um dia inteiramente meu.
Gosto da sensação de liberdade de, a meio da semana, enquanto toda a gente trabalha e a cidade mantém o seu ritmo apressado, parar. E então, sem horários, sem obrigações, sem destino certo, com tempo, poder deliciar-me com coisas tão banais como saborear um santini; ou entregar-me  vagarosamente a outros pequenos  prazeres: observar com calma o que me rodeia, caminhar sem rumo por esta cidade a que me liga um amor desmedido e  inesgotável, demorar-me ao sol junto ao rio e, embalada pela brisa suave da tarde, deixar os olhos encher-se de luz, presos na imensa beleza das águas mansas e brilhantes. Fazer o que me apetece, sem limites de tempo nem de espaço, o pensamento entregue aos mais loucos devaneios e os sentidos totalmente despertos.
Foi o que fiz ontem, num dia luminoso de Inverno, com um sol morno a antecipar a Primavera. E foi bom.
São dias assim que me fazem sentir que a vida é linda  e vale a pena, que me pacificam o corpo e alma e me devolvem a força e a vontade de retomar o quotidiano, preenchido de mil e uma ocupações e  muito mais barulhento.
Afinal, é preciso tão pouco para me sentir feliz...

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Para lá das palavras...


Esta é uma canção que chegou recentemente à minha vida. E, agora que a conheço, gosto de a ouvir, com tudo o que me faz sentir e pensar.
Porque o inesperado da vida é, muitas vezes, quase sempre, também, o que ela tem de mais bonito. E porque há pessoas com as quais não precisamos de muitas palavras para nos entendermos.
Por todos os dias e todos os momentos em que as palavras faltam. Por tudo o que existe antes das palavras e para lá delas. Por tudo o que ainda está para acontecer. Por todas as manhãs de sol e todas as noites de lua cheia por viver. Pelo presente e pelo futuro.  Por tudo o que nos une e nos separa, nos aproxima e nos afasta.
Ou, simplesmente, apenas porque sim. Porque, hoje,  quero fazê-la minha e agradecer a quem ma deu a conhecer. Só isso. Só assim. Pelo lado de dentro do coração...

Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes
para não pensar em coisa nenhuma
para nem me sentir viver
para só saber de mim nos olhos dos outros, reflectido. (Alberto Caeiro)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Candelária


Foi em Espanha e mais especificamente na Aldea del Rocío, na província de Huelva, um lugar mágico e de grande significado para mim, que, pela primeira vez, tive contacto com esta festa.
A Candelária é uma celebração litúrgica que se realiza quarenta dias depois do Natal, a 2 de Fevereiro, conhecida também como a "festa da luz" e na qual se rememora a apresentação de Jesus no Templo e a purificação da Virgem Maria.
Em El Rocío, a tradição surgiu depois da guerra civil, quando um grupo de  trianeros teve a ideia de aproveitar a data e o seu significado para organizar uma peregrinação, a cavalo, de Villamanrique ao Rocío; e de apresentar à Virgem as crianças nascidas durante o ano, para que ela pudesse abençoá-las e protegê-las.
A ideia agradou à irmandade matriz - a irmandadade de Almonte - convertendo-se, nos últimos vinte anos, ou mais, numa comemoração de todos os rocieros e não exclusiva de Triana, que mantem, no entanto, o privilégio de celebrá-la num dia específico: o Domingo anterior à Candelária, que é, normalmente, o último de Janeiro.

Aproveitando, pois, o pretexto religioso, os espanhóis da Andaluzia organizam neste fim de semana uma grande festa de inverno que é, antes mais, a festa da celebração da vida, numa atitude típica do seu temperamento alegre e extrovertido.
No Sábado à tarde, há sempre um grande almoço no campo onde, não com os fatos de flamenca da romaria de Maio, mas em trajes campestres de caça, entre cavalos e carroças, música e a alegria exuberante do sul, todos se juntam a comer, a beber, a dançar, a cantar, ou simplemente a desfrutar o prazer de estar entre amigos.
Estive por duas vezes na Candelária. E foi absolutamente inesquecível. Conheci pessoa extraordinárias, daquelas que passam a pertencer à nossa vida para sempre, vivi momentos únicos, entre andaluzes extremeños e portugueses, emocionei-me com a força telúrica e arrebatada do cante flamenco e com a sonoridade do tamboril, da flauta, da guitarra, da caja e das palmas. E pude encontrar e sentir, ali, como em nenhum outro lugar de Espanha, aquilo de que fala Miguel Torga no seu Diário, ao dizer: "Não há dúvida que me sinto bem a pisar terra espanhola. É uma sensação agradável de alargamento físico, de reconciliação íntima, de fome satisfeita."
O Rocío é um lugar diferente e feérico, onde a vida parece suspender-se por momentos para tudo ser apenas sentimento, onde as almas parecem tocar-se na simplicidade de nos sentirmos todos em sintonia e onde, de uma forma  inexplicável, se torna mais intenso e urgente o que há em nós de mais emocional. 
É que, para lá da  alegria ruidosa da festa, que dura sempre até de manhã, ali também pode encontrar-se o silêncio e a paz de espírito, que nos reconciliam com o lado mais profundo e vulnerável de nós mesmos.
Lembro-me de uma manhã em que acordei cedo e saí para caminhar pela imensa areia, na solidão da aldeia adormecida. E de como, no recolhimento da ermita, diante da Virgem, senti, reconfortada, fortalecer-se a minha fé; ou de como,  na quieta tranquilidade da marisma e na sua beleza  de certo modo inebriante, encontrei o equilíbrio e a serenidade de me sentir em harmonia com o mundo e a vida.
O Rocío é tudo isto e o que eu não sei dizer, o que só se sente por dentro, o que só compreende quem já lá esteve e pôde maravilhar-se com a explosão dos sentidos de uma vivência assim.
Tal como me acontece por alturas da Romaria, mesmo quando não vou ao Rocío, vem-me a nostalgia daquele lugar e a doce lembrança de tudo o que ele passou a ser para mim.


Este fim de semana, muitos amigos e conhecidos voltam a reunir-se para mais uma Candelária. Eu não vou. Mas, Sábado e Domingo, o meu coração volta a ser rociero e o o meu pensamento estará entre Portugal, onde estou e aquele lugar tão especial de Espanha, o Rocío, onde, uma vez mais, eu queria estar...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Kairos, ou a plenitude do momento




Para designar o tempo, a antiguidade grega distinguia duas palavras: Kronos, o tempo sequencial tal como hoje o entendemos, que pode ser medido, repartido em horas, dias, meses, anos; e Kairos, definido como um momento indeterminado, existencial, em que algo de especial  acontece.
Segundo a mitologia, Kronos seria um ser de três cabeças que teria dado  origem ao universo, ordenado em terra, mar e céu; e Kairos estaria intimimamente ligado a Atena (sabedoria) e Eros (amor), ao tempo psicológico, à beleza cristalizada de cada momento, ao ser sem devir.
Hoje, a noção que temos do tempo é a de uma sequência de acontecimentos captados pelos sentidos, que se sucedem de forma lenta, ou rápida, fluindo como a água, associado à influência que tem em nós a alternância entre a luz e a escuridão, o dia e a noite, ou a mudança das estações; mas, também, tudo o que é relativo no tempo e no espaço, potencializador da impressão que nos causa e nos permite viver o presente na mais absoluta plenitude. O tempo que corre e o tempo que apenas é.
A isto se refere Jorge Amado, no belíssimo conto O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá - uma história de amor, nestes termos: "O tempo é um ser difícil. Quando queremos que ele se prolongue, seja demorado e lento, ele foge às pressas, nem se sente o correr das horas. Quando queremos que ele voe mais depressa que o pensamento, porque sofremos, porque vivemos um tempo mau, ele escoa moroso, longo é o desfilar das horas."
Ou Marguerite Yourcenar, em L'eau qui coule: "Sem relógio, sem calendário (...) o tempo passava como um relâmpago ou então durava eternidades. Nascia o Sol e desaparecia, num sítio um poucochinho diferente do da véspera, um pouco mais cedo todas as noites, um pouco mais tarde todas as manhãs. A madrugada e o crepúsculo eram os únicos acontecimentos de monta. Entre eles algo corria que não era o tempo, mas a vida."
Também eu tenho uma estranha relação com o tempo, um deslumbramento pelo seu carácter passageiro, simbolicamente representado pela metáfora da corrente do rio (Sous le Pont Mirabeau coule la Seine), numa efemeridade que torna cada momento único e irrepetível; e, simultaneamente, a noção clara disto que a vida me foi ensinando: que só o presente importa e que temos que aproveitar cada dia, não apenas como mais um dia, mas como uma dádiva da existência, na sua inquebrantável relação com o universo.
Será isso que explica, talvez, a minha paixão por relógios, que já em criança me fazia ficar parada diante do relógio de pêndulo da sala dos meus avós, ou deter-me embascada a ouvir tic-tacs vindos não sabia de onde e que faz de mim uma adulta sempre pontual, que não dispensa por nada o uso de relógio. Os relógios são, de facto, (além das canetas), um dos meus objectos de estimação. E de colecção.
Tentativa sempre frustrada de capturar o tempo, de o deter num momento em que passado presente e futuro se confundem e coexistem, ou vontade secreta de aprender a só ser, kronos dissipando-se em Kairos?
Esta relação dialéctica, contraditória e mesmo inesgotável entre o que é um pouco a alma portuguesa, vivendo permanentemente na nostalgia de um passado que não volta e confere ao presente uma melancolia que só a esperança num  futuro melhor e maior atenua e a mais nítida consciência de que o passado não se repete e o futuro não existe, é que nos permite um olhar demorado sobre o presente, feito de sorrisos e silêncios sublimes, que nos impedem de "ficar para sempre à margem de nós mesmos."

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Medo e desejo


Em certos dias, na serena inquietação entre o que se deseja e se teme com idêntica intensidade,  hesitando entre atrevimentos e esperas, é impossível não sonhar com zês marcados no decote, heróis de capa e espada como metáfora de enredos por cumprir, distâncias a esbater, dúvidas subitamente dissipadas, revelações feitas de olhos nos olhos e defesas deitadas por terra ao primeiro olhar.
Depois, na subtileza dos silêncios, aprender a conciliar o mistério que incendeia a vontade e o respeito pelo tempo e o espaço alheios, conseguir sossegar o coração,  que bate às vezes descompassado, na ânsia de desfazer pontos de interrogação; e deixar, apenas, as palavras e o tempo fluir.
É que,  tantas vezes, em percursos que se cruzam, se afastam, ou apenas se tocam ao de leve, o desejo de ser livre coexiste, inevitavelmente, com afectos que trazemos atados ao peito, porque, como tão bem diz Helena Sacadura Cabral,  "há pessoas de quem gostamos mesmo antes de as encontrarmos"...

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Sim filha, pois amor



Na minha família, na minha casa e no meu círculo mais íntimo, nunca houve tendência para a utilização de petit-noms, diminutivos, ou outras denominações do mesmo género. Mesmo quando eu era pequena, não me lembro de "mamãs" e "papás", nem de "popós" e "ãoãos". Habituámo-nos, pois, desde sempre, a chamar as pessoas e as coisas pelos seus nomes.
Será talvez por isso, ou apenas por uma questão de gosto, que há certas  formas de tratamento que são, para mim, absolutamente detestáveis. De "filha" a "querida", passando por "fofinha" e outros epítetos semelhantes, pretensa e aparentemente carinhosos, mas reveladores, sobretudo, de algum paternalismo condescendente, todos me parecem, antes de mais, sinal da maior parolice. 
Mas, o cúmulo de tudo isto é mesmo aquela mania enervante que certas pessoas têm de se dirigir a alguém chamando-lhe "amor". Ou, pior, na sua versão abreviada e ainda mais insuportável: "mor". Quem diz "mor", tem também tendência para dizer "miga". Não entendo porquê. Nem para quê. Nunca percebi se quem o diz pensa que dirigir-se assim ao outro é uma manifestação exterior de um apego mais forte e mais profundo. Ou se há nesse tipo de designação alguma tentativa implícita, mesmo inconsciente, de alardear sentimentos de posse. Não importa! As pessoas podem tratar-se como muito bem entenderem. Felizmente, nunca me relacionei com ninguém que apreciasse esse tipo de "mimos". E não deve ser por acaso.
É que acho que há determinadas meiguices que só fazem sentido na intimidade da solidão a dois, e devem circunscrever-se a esse(s) espaço(s) e a esse(s) tempo(s), onde tudo é permitido. Aí sim,  gosto de todas as pequenas coisas ternas que se dizem baixinho, ou nem por isso, mas longe de olhares e ouvidos indiscretos. E, para mim, não há nada mais charmoso, nem mesmo mais sexy, do que ouvir uma voz que me é querida dizer o meu nome, em todas as sua variantes, chamando por mim, entre múrmurios de amor, ou palavras embrulhadas de afecto. Porque é o meu nome que me distingue e identifica; e que me faz diferente de qualquer outro "amor."

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Gostar de ler


Sempre gostei de ler. Muito. Não consigo mesmo imaginar a minha vida sem os livros, nem terá sido por acaso que, depois de algumas hesitações, fui para Letras  e escolhi um curso de literatura.
Mas, o contacto com os livros tem que ser uma experiência positiva. Tem que ser, antes de mais, um prazer. E, essa aprendizagem, mais imediata ou mais lenta, não se adequa a nenhum tipo de "receita", ou solução pré-concebida.  
É talvez por isso que desconfio bastante da eficácia do "Plano Nacional de Leitura". Considerado um "desígnio nacional", o PNL, como é habitualmente conhecido, foi lançado em 2006 pelo Ministério da Educação e patrocionado pela Presidência da República, em sintonia com os ministérios da Cultura e dos Assuntos Parlamentares, com a nobre missão de promover e aprofundar os hábitos de leitura da população portuguesa, de modo a melhorar os níveis de literacia, considerados muito aquém do desejável, e situá-los, assim, mais próximos da média europeia.
O Plano Nacional de Leitura é essencialmente constituído por uma extensa e, quanto a mim, mal organizada lista de livros, escolhidos com base em critérios vagos, duvidosos ou, até, aparentemente, inexistentes, que são os livros "recomendados" para "leitura autónoma", em função da faixa etária e/ou ano de escolaridade.
Bem mandados e sem se questionar muito, como de costume, os professores apressaram-se a cumprir mais esta "missão", desdobrando-se em actividades tão absurdas como os "contratos de leitura" (só o nome me dá uma imensa vontade de rir - apenas comparável ao das "oficinas de escrita", que me lembra sempre "camaradas em luta" no tempo do PREC - ), mediante os quais os alunos que, em geral, gostam pouco de ler ou não descobriram ainda como isso pode ser maravilhoso,  são obrigados a assumir o compromisso de ler, querendo ou não, além das leituras obrigatórias do programa, mais não sei quantos livros de empreitada, numa tarefa que é ironicamente designada como "leitura recreativa".
Tudo isto, esquecendo o óbvio: que ninguém começa a gostar de ler por obrigação, ou imposição. Pior ainda quando, além de ter de ler, independemente de ter ou não vontade para o fazer, se têm que fazer "fichas" sobre o que se lê. (Um dia também gostava de entender por que é que os professores têm a mania das fichas. E das "grelhas". Só que, isso, são outras conversas...).
Quando eu era pequena, não havia ainda o PNL, mas havia nas aulas de português a chamada "Biblioteca de Turma", uma actividade odiosa, mesmo para mim, que adorava ler. Era uma espécíe de "contrato de leitura" avant la lettre. Uma vez por semana, por mês, ou já não sei com que periodicidade, tinhamos que ler um daqueles livros (cada aluno levava um livro seu e depois trocávamos, segundo o que recordo) e, claro está,  preencher a tenebrosa "ficha de leitura".
E, por nunca me ter esquecido da tortura que isso representava para mim e para todos os outros, sempre me recusei, como professora, a fazer alguma coisa que pudesse parecer-se com isso, nem que fosse vagamente, porque tenho a certeza absoluta que não é assim que se começa a gostar de ler.
Como fazer então? Levando-os a perceber, pelos mais diversos caminhos, que ler pode ser uma fantástica experiência. Acho que é mais ou menos como nesta frase de Manuel Gusmão: "Ao trabalharmos com os textos literários nas aulas (...), consintamos em proporcionar aos estudantes um dom semelhante: o de se verem como não sabiam que eram, foram ou podem ser."
Dito isto, e sem esquecer o papel fundamental que as famílias podem ter no incentivo à leitura, o que faz uma diferença significativa, sei bem que há, actualmente, excelentes trabalhos feitos nas  escolas para ensinar a gostar de ler, como também já havia antes do PNL.  E, nesse sentido, ele não vem mudar grande coisa. É apenas uma forma de desperdiçar dinheiro, entre outras coisas. E pouco mais.
O gosto pela leitura adquire-se com o tempo e o prazer de ler pode transmitir-se de maneiras que podem até ser muito simples. Mas tem que se começar por ter vontade de ler. O lema da "leitura recreativa" deveria ser, pois, o que preconiza o poema Liberdade de Fernando Pessoa: "Ai que prazer não cumprir um dever/ Ter um livro para ler e não o fazer..."
Enfim, a questão é complexa; há que procurar as mais variadas maneiras de  mostrar que a leitura pode ser uma coisa boa e não apenas mais uma obrigação; e essa descoberta, com tentativas bem sucedidas e outras nem tanto, pode também ser muitíssimo aliciante, tanto para quem ensina como para quem aprende.
Lembro-me, por exemplo, de um dia em que, entusiasmada com um livro que andava a ler, o levei para a aula, o recomendei aos meus alunos e até lhes li uma passagem. Assim, espontaneamente, sem qualquer preparação prévia; e da minha surpresa quando um deles me disse: "Nunca  a tinha ouvido ler para nós. Devia fazer isto mais vezes!"
Já tenho imensas ideias novas sobre a leitura e os livros para quando regressar à escola. E, se conseguir que dois ou três alunos percebam que ler é realmente bom, ficarei muito feliz!

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Ave rara




Sim, é verdade! Faço parte do grupo restrito das pessoas que não conduzem. Pior: não tenho, sequer, a carta de condução.
Sem arrependimentos, nem complexos, aguento os olhares arregalados,  a meio caminho entre o pasmo chocado e a condescendência compadecida, de quem considera ser essa uma situação um pouco estranha, ou mesmo indício de uma anormalidade qualquer. De quem não compreende como é possível viver sem "ter carro". E de todos os que adoram repetir, até à exaustão, a liberdade de movimentos e a comodidade que lhe são inerentes, achando, mesmo sem o dizer, deixando-o transparecer apenas nos olhos apiedados, que viver assim é ter a existência, de certo modo, mais limitada. 
Eu ouço-os e não quero saber. Às vezes, até sorrio interiormente, quando assisto à sua incapacidade de se deslocar de outro modo, horrorizados com a súbita e ocasional necessidade de ter de utilizar um transporte público, desconhecedores de qualquer opção que saia um pouco dos seus circuitos habituais. Ou quando os ouço falar do "meu carro", envaidecidos com proezas e performances, como se de uma extensão  de si mesmos se tratasse. E pergunto-me quem terá  afinal  a vida mais sujeita a dependências e restrições.
Enfim, é uma daquelas coisas que eu poderia ter feito e não fiz. Por acaso, como quase tudo o que me acontece na vida. Até tentei. Mas não correu bem. Foi há mais de vinte anos. A parte teórica, sem problemas. A prática, bem mais desastrada, marcou o meu primeiro contacto com o fracasso ao nível das aptidões. Nunca antes tinha "chumbado" em coisa nenhuma e achava, na altura, que teria jeito para tudo o que quisesse experimentar. "Não te esforçaste o suficiente", diziam-me alguns, "tu consegues sempre fazer tudo, se quiseres". Outros, falavam-me em persistência: "Raras são as pessoas que o conseguem à primeira. Tens de voltar lá e tentar de novo". E havia ainda os que, mais queridos, ou talvez não, tentavam consolar-me com pequenas pérolas, deste  género: "Todos os intelectuais têm dificuldade nas coisas mais práticas. É mesmo assim!" Um dia, farta de ouvir tanta opinião, deitei fora toda a papelada e não pensei mais nisso. Desmotivei, pois, pensando "não tenho pachorra para andar a insistir" e acomodada, também,  pelo facto de durante cerca de vinte anos trabalhar perto de casa.
Podia fazê-lo ainda? Claro que sim! Só que, agora, simplesmente, não me apetece. Hoje, familiarizada com esta condição, que não me engrandece nem me diminui, aceito-a como tudo o que acho que é assim e pronto.
E já estou habituada a andar de transportes, ou a andar a pé, que adoro. Desloco-me com a desenvoltura de quem sabe para onde vai e como pode lá chegar. Conheço muito bem  a cidade, tenho excelente memória e sentido de orientação, sei todas as ligações e o melhor caminho para chegar onde quer que seja. Há mesmo quem jure a pés juntos que, entre mim e um taxista, sou eu que levo a "palma de ouro". Há também, entre os meus amigos, quem diga que não vale a pena comprar GPS enquanto eu estiver perto.
Não preciso de carro para ir onde eu quiser. Posso até demorar um pouco mais, mas chego lá na mesma. Além disso, se quisermos ver o lado mais positivo da questão, os transportes podem ser uma interessante experiência do quotidiano. Há dias em que me divirto a observar e a ouvir as pessoas; noutros, refugio-me num canto e perco-me nos meus pensamentos, ao som de uma música qualquer. Consoante os humores de cada momento.
No entanto, adoro andar de carro. E, se por um lado, tenho "a mania que sou independente", como a minha mãe tantas vezes me dizia, quando se zangava comigo por eu não querer a sua ajuda, também não é menos verdade que adoro todo o tipo de mimos e atenções, que gosto muito me conduzam, que me abram a porta, que me levem a casa... Por isso, nunca peço uma boleia, mas aceito-as todas. E agradeço, reconhecida, porque sou pouco orgulhosa.
Se tivesse um carro meu, de certeza que muitas vezes me metia nele e andava por aí, sem rumo nem destino certo, como tantas vezes faço, caminhando. Mas, como quase tudo, é muito melhor fazê-lo em boa companhia.  Afinal, é  tão bom deixarmo-nos levar, tirar os olhos da estrada e ter disponibilidade para admirar o mundo à nossa volta. E partilhar o prazer da viagem com quem nos acompanha...

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Dobrar a Língua!


Início de semana com sol e uma boa notícia:  recomeça hoje, na RTP1, o melhor programa que me  lembro de ter visto sobre a língua portuguesa. Será, provavelmente, o melhor de sempre, o que explica  o facto de ir já para a sua oitava temporada.
Num tempo em que tudo o que é cultura é considerado supérfluo e mais ou menos marginal; numa altura em que se fala cada vez pior, em que a língua portuguesa é cada vez mais maltratada, sem que ninguém se importe ou preocupe com o registo e a correcção do que é dito e escrito, como se dizer / escrever "assim ou assado" fosse absolutamente irrelevante, é de saudar a existência e  a insistência num programa que trata o assunto com  o rigor e a seriedade que ele merece. Por isso, todas as segundas feiras, a seguir  ao telejornal, há agora quinze minutos a não perder.
São mais cem programas de reflexão sobre a língua e tudo aquilo em que ela nos faz pensar, de curiosidades, de informação sobre o seu bom ou mau uso, numa perspectiva mais histórica ou mais pragmática, com carácter lúdico, informativo e  mesmo didáctico, no tempo certo e num tom vivo, onde o humor e a exigência se aliam com a maior naturalidade.
E, como se isto fosse pouco, o programa é brilhantemente apresentado por Diogo Infante, que é sempre garantia de qualidade; e tem a locução de Maria Flor Pedroso, a mais bonita voz dos media portugueses - a voz que eu gostaria de ter.
São, pois,  muitos motivos de interesse para aprender a "dobrar a língua". E há por aí tanta gente que precisa... Bom, precisamos todos, em diferentes proporções!

domingo, 13 de janeiro de 2013

Amour


Durante algum tempo, andei a ganhar coragem para ir ver este filme. Fui hoje. É um filme duro, mas que vale a pena ver. Pelas extraordinárias interpretações de  Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, por Isabelle Huppert, ou até pela pequena participação de Rita Blanco. Mas, acima de tudo, porque nos mostra um lado do amor que não é o que estamos habituados a ver. Porque fala do que há nele de mais inexplicável e desconcertante. E, também, porque nos deixa desconfortáveis, porque põe a nu muita coisa em que normalmente evitamos pensar, por medo, cobardia, ou seja lá o que for.
 Deixo aqui um excerto do texto sobre o filme, escrito por Teresa Ribeiro no Delito de Opinião, ao qual cheguei através da minha querida Helena Sacadura Cabral que, há cerca de um mês, o publicou também no seu blog.
Este é, talvez, um dos grandes filmes do ano. Digo eu...

Em "Amor", Michael Haneke mostra-nos o que acontece às pessoas que perdem o nome. (...). Neste filme, Haneke também nos obriga à visualização compulsiva da obscenidade que é a perda da autonomia e da dignidade na velhice através do desempenho magistral de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva. Mas a prova mais difícil de "Amor" tem como figura chave a personagem de Isabelle Huppert, que interpreta a filha do casal idoso. Em entrevista recente o realizador austríaco disse que ficou emocionado quando Huppert aceitou este papel, por ser tão pequeno. De facto são escassas as cenas em que a actriz aparece, mas a sua ausência é parte fundamental do enredo. Huppert somos nós. A indisponibilidade, o egoísmo, a imaturidade, a cobardia e a negação são nossas. E quando já de luto se senta sozinha na casa dos pais, é em nós que se instala o vazio.
Em poucas sessões tenho visto a plateia de uma sala de cinema permanecer sentada, em silêncio, até que as luzes se acendem e a ficha técnica chega ao fim. Não por acaso foi o que aconteceu quando fui ver este "Amor" implacável, inesquecível, de Haneke (...) o filme mais premiado no Prémios do Cinema Europeu 2012, distinguido com os galardões de melhor filme europeu, melhor actor e melhor actriz e também vencedor da Palma de Ouro em Cannes, na edição deste ano. A não perder.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Voltar à Faculdade de Letras

 
Muitos anos depois, estou de volta. De certo modo, é como regressar ao passado. E, ao mesmo tempo, não é bem. O espaço continua quase igual; o anfiteatro II ainda tem o mesmo cheiro a madeira, o velho bar está mais ou menos na mesma. O tipo de população é que é completamente diferente, deixando bem claro que é outra geração e outro tempo.
Quando passei por lá, uma menina ainda,  inocente e ávida de saber, cheia de sonhos e de ideias por concretizar, tive muito boas surpresas, mas também algumas decepções. Lembro-me de um certo desencanto inicial por não encontrar exactamente o que idealizara, de me perguntar com frequência "será que é mesmo isto que eu quero?", de não gostar muito do ambiente,  nem de algumas "cadeiras" e professores menos interessantes.
E, do mesmo modo,  relembro, também, hoje ainda, o enorme prazer com que ouvia as aulas de alguns dos melhores professores que tive na vida, com os quais aprendi, ou aprofundei, as delícias da leitura e da escrita e o modo como as manifestações artísticas, e a literatura em particular, pela sua vocação um pouco cosmopolita, nos ajuda, através do cruzamento de olhares que propicia, a ter uma visão mais alargada do mundo, a pensar e a pensar-nos, provocando, também, uma enorme satisfação intelectual.
 O que é para mim de facto extraordinário neste regresso, em início de ano, é voltar a sentir o gosto de antes, amadurecido por tudo o que entretanto pude viver e experienciar, que me permite saboreá-lo, agora, mais e melhor. E ter cada vez mais a certeza que a minha escolha inicial foi  uma escolha acertada, porque é mesmo disto que eu gosto.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Azul

 
O azul é, sem dúvida, a minha cor. Dizem que é a cor da Terra vista do espaço. Para mim, é a cor do mar e do céu, da imensidão sem fim onde gosto de perder o olhar.
Se pudesse, agora, ia ver o mar,  sentir o vento e, em silêncio e solidão, deixar o pensamento voar nos mais insensatos devaneios, alimentados pela tua ausência.
Olhar-te dentro do pensamento e adivinhar-te para lá do que sei. Esquecer, ou render-me à vontade de ti que, tantas vezes, me  cresce no espírito e no corpo e me ocupa  tempo e espaço de existir?
Ou então, simplesmente, deixar-me estar quieta; e contemplar  o horizonte sem pensar em nada, sentindo apenas o ar, limpo pela claridade do sol de Inverno, que aquece tão pouco.
É o azul que me devolve a paz, que me harmoniza com o mundo e a vida; e me sossega nos momentos em que o coração se me antecipa e desata a bater desenfreado, para lá do razoável, alternando entre o que quero e não quero, sonho e  realidade, proximidade e distância, sim e não. Ou tudo ao mesmo tempo...

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

As Palavras dos Outros

Hoje, estou de mau humor. Deve ser do tempo, ou assim. E, por isso, ou não sei porquê, faltam-me as palavras. Ainda por cima, estou com um problema qualquer no blog, que não me deixa importar fotografias. E não percebo nada disto...
No blogue "Cinco quartos de laranja" encontrei as palavras que me servem. Não são minhas, mas aqui ficam, com as devidas aspas.

Janeiro é o primeiro mês do ano e com ele vem a vontade de recomeçar. E todos os recomeços obrigam à reflexão, a gerir pensamentos, vontades e quereres. Obrigam a procurar palavras, a dar-lhes sentidos, a pronunciar muito bem os verbos acreditar, continuar e persistir. Este mês faz-nos olhar para o céu azul luminoso e pensar que sim, que é possível acrescentar poesia à nossa vida. Janeiro traz-nos de novo vontades e desejos. Traz-nos, embrulhados nos dias frios, papéis de esperança e agasalhos de felicidade.

Janeiro é um mês de silêncios. Silêncios que se traduzem em ideias, que por sua vez ganham vida em traços, pontos, linhas, tudo isto esboçado em palavras nos nossos moleskines. E, quando escrevemos os silêncios que pululam nas nossas cabeças, nascem objectivos e desejos para o novo ano que começa em Janeiro.

Neste novo ano, quero continuar a olhar para as coisas de que gosto com paixão, como se tudo fosse um milagre que nos chega e pelo qual devemos dar graças. Quero olhar mais vezes à noite para o céu estrelado. Quero contemplar o mar, sentir o cheio da maresia e caminhar ao pôr-do-sol na areia molhada da praia. Correr atrás das gaivotas e rir. Rir, muito, muito.

Quero andar na cidade a pé. Olhar para os edifícios. Ver as pessoas de um lado para o outro. Parar para ver as montras. Sentar-me num banco de jardim. Subir da baixa até à Graça. Ver o Tejo. Respirar fundo numa das sete colinas (...). Ver gente. Conhecer pessoas. Abrir horizontes.
 (...)
Ler e escrever ajudam-me a sonhar e a pensar no futuro. Em 2013 quero continuar a sonhar. Muito. (...). Quero escrever postais e enviar cartas. Quero continuar a fotografar e a registar lembranças. Quero aprender. Quero melhorar.

Espero dar continuidade a alguns projectos e começar outros. Anseio por novas oportunidades e desafios. O blogue tem sido feito de várias etapas percorridas, numa estrada que espero que me leve a muitos e bons desafios, como tem acontecido até agora.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Dia de Reis


“Depois de Jesus ter nascido em Belém da Judéia, (...) eis que vieram magos das regiões orientais (...)a estrela que tinham visto quando estavam no Oriente ia adiante deles, até que se deteve por cima do lugar onde estava o Menino. Ao verem a estrela, alegraram-se muitíssimo. E ao entrarem na casa, viram-no com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, prestaram-lhe homenagem. Abriram também seus tesouros e presentearam-no com dádivas: ouro, incenso e mirra. ” (Mateus 2:1,12)
 
A comemoração do Dia de Reis, de tradição cristã, baseia-se nesta passagem do evangelho de S. Mateus, a qual terá dado origem à criação da lenda dos três reis magos e, impôs, posteriormente,  o costume dos presentes no Natal.
Pouco importa a veracidade da história, tantas vezes posta em causa, por não haver, em Mateus, nenhuma informação que permita concluir  sobre a realeza das personagens; e o mesmo quanto ao seu número e aos nomes de Belchior, Gaspar e Baltazar, com que nos habituámos a designá-los, desde aquele longínquo momento da infância em que a ouvimos contar pela primeira vez. 
O que é nela mais enternecedor e comovente é a ideia da viagem solitária, mas com um fim determinado, em camelo, através do deserto, apenas guiados por uma estrela, que os iluminava e indicava o caminho. É esta dimensão mais poética que lhe confere uma aura de encantamento, que alimenta o nosso imaginário, eterniza ilusões e nos devolve a nossa infância.
Em Portugal, é uma data a que se atribui muito pouca importância e quase não se dá por ela.
Em Espanha, pelo contrário, espera-se por este dia para dar e receber os presentes, que é como deveria ser em toda a parte. E, por isso, para os espanhóis, esta é a noite mais mágica do ano, em que, de certo modo, todos voltam a ser crianças.
Há, aliás, muitas coisas que podíamos aprender com eles. A começar pela sua enorme alegria de viver. Mas isso é outra história!

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Sol de Inverno



Sempre gostara de se estender ao sol, como se dentro dela houvesse uma necessidade urgente de luz, ou da energia que  aquele calor lhe transmitia. Nem lhe importava a estação do ano. O sol, mesmo mortiço, sabia-lhe bem. Animava-a; compensava-a do frio  que se lhe instalara no corpo. E também, talvez, no coração.
Procurava, entre memórias perdidas, às voltas na sua cabeça, girando a mil à hora, desvendar o momento exacto ou o acontecimento que poderia tê-los feito chegar áquele ponto em que já nada parecia ter remédio.
Sentia-se dividida entre a vontade de o reter e recuperar o amor que o tempo desgastara, tão lentamente que não os deixara sequer aperceber-se  do que ia acontecendo, ou deixá-lo ir, como se o fim fosse natural e inevitável.
Seria tão banal como dizia a canção naquele dia?  (maybe it's just the way it is and there's nothing I can do it's just the way it is...) Tantos anos depois da primeira vez, recordava aquela noite fria de Dezembro, esquecida num tempo já muito longínquo; e perguntava-se o que sobrava desse amor, ao qual se dera para lá do que alguma vez julgara possível. Juntos, tinham vivido quase tudo: o amor e a dor, a descoberta do prazer e o desânimo, a mágoa e a saudade.
No fundo achava que, apesar de todos os entusiasmos que se lhe cruzavam por diante, nunca seria capaz de amar com a mesma entrega de corpo e alma com que sempre se lhe dera inteira. O que os unia afinal? Era cada vez mais amizade e cada vez menos amor, num percurso antigo,  em que até então tinha sido impossível distinguir onde acabava uma  coisa e começava a outra e que, no entanto,  nunca fora simples, nem mesmo pacífico.
Às vezes pensava que ainda queria que tudo pudesse voltar a ser o que já fora; e como seria bom se bastasse simplesmente abrir os braços para trazê-lo outra vez para perto do seu coração, na serenidade de um afecto antigo, porto seguro de todas as horas e memória de colos ancestrais. Amava-o,  na verdade, ou tudo o que sentia não eram senão os restos de um amor à beira do fim, a saudade de uma intimidade perdida?
Quando o olhava no fundo dos olhos,  procurando em vão a resposta para o que lhes acontecia, continuava a enternecer-se e a enfeitiçar-se um bocadinho com o seu brilho meio triste, semelhante a  um pedido de protecção reprimido pelo pudor,  capaz de despertar nela instintos maternais entretanto adormecidos na parte mais funda e obscura de si.
E tentava entender por que a atraíam novos enredos, o que a fazia deixar-se levar na procura de novas emoções e de uma felicidade mais plena, o que a fascinava noutros corpos,  ou em personalidades mais  pressentidas do que reveladas, em possibilidades sonhadas, na incapacidade de resistir à tentação, quem sabe se apenas iludida pela ânsia do coração disparado a querer saltar do peito e do corpo a arder de desejo, de sentidos à solta, em busca de uma originalidade qualquer, que lhe permitisse voar a grandes altitudes, em direcção a caminhos tão incertos quanto aliciantes, muito para lá do horizonte, atravessando a linha onde o mar o o céu se juntam numa união aparentemente  tão perfeita.
Depois, voltava a indisfarçável vontade de se enroscar no seu colo e a saudade de todos os momentos em que, esquecidos do mundo, se entregavam ao seu amor, tão profundo e diferente de tudo, demorando-se um no outro, num consentimento mútuo que não precisava de muitas palavras. Do tempo em que se arrepiavam ao mínimo toque; do prazer da  pele deslizando contra a pele; da descoberta de cada milímetro de corpo, que as suas mãos conheciam agora de cor; e do gosto dos beijos, quentes, molhados, grandes, pequenos, depressa, devagar. Ou das vezes em que, estando sozinha, um cheiro a  perfume lhe bastava para o  trazer de novo até si e sentir a vontade da sua boca a crescer-lhe no corpo, na imensa saudade de tanto que haviam aprendido e experimentado juntos.
Mas o tempo, implacável, tinha acabado por confirmar o que a idade adulta lhe deixava adivinhar e o coração persistia em querer contrariar:  só  as histórias de encantar têm finais felizes.
O  seu amor era  agora semelhante  ao sol de inverno, obstinando-se num brilho enfraquecido, ou deixando-se vencer pela sombra das nuvens. Os seus braços já não a agarravam com a mesma força protectora; o seu colo não tinha o mesmo calor de outrora. E, ainda assim, não imaginava a sua vida sem aquele abraço.  Como separar-se, excluindo da existência o que tanto se quis? Sabia que entre eles, depois de tudo o que tinham passado juntos, a distância total era impossível. Que o quer que fosse que viesse a acontecer, ele sempre lhe importaria. E  concluía que nunca nada é definitivo, nem mesmo o que parece  próximo de ser um fim. Tinha a certeza que, tal como precisava  da música e da poesia, do mar e do sol, precisaria sempre da pureza e da fortaleza do seu afecto amigo. Porque há sentimentos íntimos que são como um nó que nunca se desfaz. E porque há amores assim, sem limites nem amarras, que chegam à nossa vida, se instalam e ficam nela para sempre.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Dia 1, Post 100



Primeiro dia de um ano acabadinho de estrear, que todos queremos acreditar vir a ser realmente novo e bom. Gosto desta sensação de recomeço que traz o início de mais um ano, do sem fim de possibilidades inteiramente em aberto que atribuímos a esses dias por viver, da alegria  de pensarmos que  tudo volta  a ser  possível.
Por todo o lado, ouve-se a enfadonha conversa da crise e das dificuldades que aí vêm, associada, muitas vezes, ainda por cima, à maldição nefasta do número 13. Eu ouço e não acredito. Ou acredito, em parte; mas a minha  natureza optimista impede-me de olhar o ano com apreensão, como se uma fatalidade qualquer estivesse na iminência de se abater sobre os nossos destinos. E, se é verdade que não percebo nada de economia, procuro, apesar de tudo, manter-me informada sobre o essencial. Acho que não é inconsciência minha, mas continuo na esperança de que possa não ser bem assim, de que as previsões mais pessimistas não passem de exagero; e, como a nossa vida é feita de muito mais do que de economia, felizmente,  creio que havemos, ainda assim, de conseguir encontrar motivos para sorrir e ser felizes.  
É, pois,  cheia de esperança, na ânsia contida de querer sempre mais e melhor, de viver plenamente cada dia, cada momento, sem querer saber como será depois, que começo este novo ano.
E não deixa de ser curioso que, neste dia de (re)começo(s), escreva o meu centésimo post. Já falei disto longamente noutros posts, mas o blog  é, para mim, entre outras, uma das coisas boas que trago comigo de 2012. Uma novidade, que  ocupou um espaço considerável na minha vida, sobretudo na segunda metade do ano e foi, simultaneamente, uma revelação e uma libertação: por tudo o que, com ele, aprendi de novo sobre mim, sobre os outros e sobre o mundo; por me ter permitido, também, abrir o coração, sem qualquer tipo de pudor de expor um lado mais íntimo, soltando emoções e sentimentos, revelando verdades escondidas no fundo do peito, sem vergonha de as assumir e guardando apenas para mim aquele reduto de intimidade que não se revela a ninguém.
Quando comecei, sem saber bem como fazê-lo e até onde isto e aquilo me levaria, mas sem pensar nisso, como é característica minha também, estava longe de imaginar que oito meses depois já teria 100 posts. É um marco, um número redondo que torna o começo do ano mais promissor.
Agora, terminados os festejos e feitos todos os votos, é tempo de retomar a rotina do quotidiano. Para mim, já a partir de amanhã, voltam as madrugadas no ginásio e os dias inteiros na DREL, diante do computador, entre processos disciplinares, respostas a estranhas dúvidas e às mais absurdas perguntas,  pareceres técnicos,  papéis; e as explicações;  e, ainda, um sem fim de afazeres e correrias que vão marcando o meu dia-a-dia, num stress que às vezes procuro e do qual, outras vezes, tento escapar-me, mas que ainda me deixa tempo para o lazer, a preguiça, os prazeres e os afectos.
Dou as boas-vindas a este ano de 2013 com o coração em paz, na certeza segura de que a felicidade é uma dádiva da vida, mas somos nós que temos que a procurar e construir. Farei por isso, pois claro!...