sábado, 26 de junho de 2021

Uma Rainha (republicação)




Para o bem e para o mal somos sempre marcados por quem nos dá a vida. São os primeiros braços que nos abraçam e embalam, o colo que nos aconchega, a voz  e o olhar que nos ensinam o mundo e guiam o caminho. Habituamo-nos assim a um amor e apoio incondicionais e a um presença forte e serena, que julgamos poder durar para sempre, sem sequer pensar nisso.
Depois desentendemo-nos e discordamos, porque também há uma idade própria de ser assim.
Mas hoje sei a quem devo a maior parte do que sou, sei da honra e da dignidade a sobrepor-se aos inevitáveis erros a que ninguém escapa, porque somos humanos, falhamos e sofremos; sei da coragem de optar pela generosidade e a alegria, quando teria sido bem mais fácil cruzar os braços e desistir, ou escolher o caminho da amargura e do cansaço. Foi no bom humor, no riso e na limpidez dos seus olhos verdes que aprendi o lado bom de todas as coisas; e herdei essa vontade imensa de aceitar e aproveitar muito bem o que nos chega, como o que fazemos chegar.
Aos noventa anos, mesmo quando se é apenas uma sombra do que se foi um dia, perde-se a pose, o corpo verga-se, provavelmente sobram poucas memórias de um percurso muito longo e muito cheio, mas fica tudo o que se construiu e o reflexo do efeito que se provocou nos outros. 
Perdem-se os gestos e as palavras, mas ficam as emoções e os afectos, que transparecem ainda em olhares cúmplices e silenciosos, em risos fortuitos, em esboços de mimos, em prazeres simples e antigos: nas mãos que se tocam e se apertam, na delícia de saborear uma madalena, e em tudo aquilo que ainda nos mantém junto dos que amamos. E até talvez felizes...
Chegar aos noventa é só mais uma vitória. Por isso,  se pudesse, hoje, coroava-a rainha. E concedia-lhe o dom da infinitude.

(Este texto foi escrito há exactamente seis anos. E hoje, quando por quinze dias já não chegou aos 96, decido republicá-lo, porque continua a ser inteiramente verdade e porque, mesmo se já não podemos abraçar-nos e rir-nos juntas, no meu coração o nosso amor será sempre infinito).

8 comentários:

  1. Lindo o seu texto, Isabel.
    Emocionei-me, porque também já vivi essa dor.
    Aceite um beijinho.
    Mª Amélia

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    1. Muito obrigada, Maria Amélia. Um beijinho para si também.

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  2. Revi-me nas tuas palavras, minha querida amiga. As mães são o nosso porto seguro, mesmo que só consigamos falar-lhes com o coração. Um beijinho

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    1. Por norma não publico comentários anónimos. Abri aqui uma excepção, por ser um comentário simpático e de uma pessoa que aparentemente me conhece, visto que me trata por tu. Só não percebo por que razão não se identifica...
      Obrigada, "anónimo"

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