Já passaram 45 anos. Parece muito tempo... E, no entanto, tenho desse dia memórias muito nítidas e completas, como se os anos quase não tivessem passado. Como hoje, há quarenta e cinco anos era quinta-feira e, como hoje, o dia estava mais invernoso que primaveril. Eu era ainda muito "pequenina" e não tinha muita consciência do que era viver sem liberdade, ou da política da altura. Lembro-me da enorme alegria que eu e a minha irmã sentimos ao saber que nesse dia não havia escola, e dos soldados que se viam da nossa janela, barrando a passagem a carros e a pessoas na Duque d' Ávila em direcção a São Sebastião, onde ficava o quartel general da Região Militar de Lisboa. Lembro-me do ar preocupado e inquieto dos adultos, de ouvidos atentos a todas as notícias e comunicados que iam passando repetidamente na rádio e/ou na televisão. O meu pai, que tinha saído cedo para trabalhar como era costume, voltou para casa a meio da manhã e, com a curiosidade habitual, quis logo ir para a rua para ver o que se passava. E foi mesmo. Passou a tarde no Largo do Carmo, apesar dos protestos da minha mãe, bem mais cautelosa, que preferiu ir abastecer-se nas mercearias do bairro, por não se saber exactamente o que "aquilo ia dar". Esta diferença de postura e de pontos de vista quase deu lugar a uma "crise conjugal". Mas a verdade é que o meu pai, originário da Baixa, foi mesmo para "o seu bairro" e só à hora de jantar voltou a casa, triunfante e com muito que contar, enquanto a minha mãe se consumira em nervosismo a tarde inteira, sem saber onde estava e que riscos corria, numa época em que os telemóveis não se imaginavam sequer.
Dos dias seguintes, lembro-me sobretudo do clima de festa e de alegria desbordante e absolutamente inigualável; da rebaldaria total em que se tornou a vida na escola, que para mim foram tempos muitíssimo divertidos, que eu nunca mais pude esquecer. E da loucura que foi viver toda a adolescência e juventude nesse ambiente pós-revolução, com todos os excessos que o caracterizaram, mas também com a esperança e a convicção de que um mundo melhor era possível, e que era a cada um de nós que competia fazê-lo.
Quarenta e cinco anos depois, muita coisa evoluiu, o mundo mudou, e nós com ele; e apesar de haver hoje muita coisa que nos desgosta e desconsola, mantemos a liberdade que conseguimos nesse dia, o que é, sem sombra de dúvida, um bem maior.
Por isso, faço minhas as palavras que Adolfo Mesquita Nunes - que eu muito prezo e admiro - escreveu hoje no Facebook:
Hoje é o dia da liberdade. (...) A liberdade não tem donos nem chancelas nem certificados nem autorizações estaduais ou grupais ou iluminadas (...). Celebremos a liberdade, emocionados, contra os autoritarismos, venham eles de onde vierem; celebremos o primado do Homem livre sobre o Estado e o colectivo; celebremos a possibilidade luminosa de cada um de nós, seja quem seja, venha de onde venha, poder lutar em liberdade pelo seu projecto de felicidade.
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra
(...)
Foi então que Abril abriu
As portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade
(...)
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.
(José Carlos Ary dos Santos)
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