sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Envelhecer assim

Devo estar a ficar velho. E, no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. (...) Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar os intervalos das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô me viesse fazer uma festa à cama. (...) Pensando bem (e digo isto ao espelho) não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou. 
Estas são palavras de António Lobo Antunes, no Livro de Crónicas, de 1998. 
Recordo-as agora, porque de facto penso que a maior parte das pessoas (falo por mim) não sente ter a idade que tem, e porque o que sentimos na cabeça é sempre diferente da crueza dos números. Pode a pele enrugar-se e emurchecer, pode perder-se o viço ou desaparecer no olhar o fulgor de outrora, mas não esmorece a alma, nem deixa de pulsar o coração. É por isso que se diz que a idade está mais no espírito com que se vive do que no número que consta do bilhete de identidade; e eu só posso concordar. Conheço pessoas de vinte ou trinta anos mais "velhas" que muitas outras de setenta ou oitenta. Que importa afinal a idade que temos? Nos homens e nas mulheres agradam-me muito as marcas visíveis da passagem do tempo, nas quais não vejo qualquer sinal de decrepitude, mas antes a lúcida sensatez de quem acumulou vivências múltiplas e se permite ainda as mais arrebatadas e extravagantes loucuras, sem se importar com as opiniões alheias. 
Recordo-as, também, porque tenho, muitas vezes, saudades do colo da minha mãe. Do tempo em que bastava dizer: "ó mãe!" para tudo se resolver; em  que  bastava ser embalada pelos seus braços fortes e bons para que todas as minhas dores passassem  e  os meus desgostos de menina se desvanecessem. Saudades das nossa tardes de Domingo, do seu riso e do seu bom humor, dos nossos abraços. Emociona-me e aflige-me em todas as horas de todos os dias não poder saber exactamente o que pensa e o que sente naquele seu mundo de silêncio, em que já nem pelo toque e pelos olhos nos deixam comunicar.
Recordo-as, sobretudo, nesta altura difícil para todos, mas especialmente para os que dada a fragilidade decorrente do peso dos anos e das marcas da vida, estão agora mais tristes e mais sozinhos, a sofrer calados. 
E não podemos fazer nada?

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Ganas de ti


Quando a pandemia chegou, eu estava a dias de partir para a cidade que sempre trago no coração além da minha Lisboa, onde já estive inúmeras vezes e de que nunca me canso. Pelo contrário: a cada nova visita, fica sempre uma vontade maior de regressar.
Desta vez iria sozinha, o que era uma estreia total. E apesar de preferir a companhia, imaginava como poderia ser bom para poder ficar horas nas livrarias e papelarias sem ter ninguém à minha espera, sentar-me tranquila em todas as esplanadas da Cité, do Quartier Latin ou de Saint-Germain-des-Prés a observar  as pessoas, ou demorar-me  no Jardin du Luxembourg  - o meu lugar preferido - ao entardecer, a ler, ou só a olhar.
Designada ville lumière muito apropriadamente, Paris tem esse magia tão singular que não sei se vem do brilho do sol sobre rio que se reflecte nos típicos telhados escuros, de uma certa sofisticação meio blasée, ou de uma aura boémia e artística que se mantém até hoje, mesmo que tenha perdido o fulgor de outros tempos.
Gosto de muitas cidades. Mas para além de Lisboa, que é berço, casa e colo, só em Paris e em Sevilha tenho esta estranha e boa sensação de ser uma espécie de "filha adoptiva".
Por isso, trago esta viagem que não chegou a acontecer atravessada no coração, e sonho com o fim disto tudo e com um regresso à normalidade para a fazer enfim realidade. Por isso, tenho ainda mais saudades do que habitualmente de voltar às suas ruas, praças jardins, pontes, cafés, livrarias, a todos os lugares de visita obrigatória e às novidades que sempre existem também. Porque Paris é inesgotável e tem sempre muita coisa a acontecer, em muitos domínios, para todos os gostos.
E como, para mim, as cidades têm muito em comum com as pessoas, enquanto espero o dia em que possamos voltar a ver-nos, vou trauteando mentalmente uma canção espanhola já antiga:

Quiero en tus manos abiertas buscar mi camino
Y que te sientas feliz solamente conmigo
Hoy tengo ganas de ti, hoy tengo ganas de ti
Quiero apagar en tus labios la sed de mi alma
Y descubrir el amor juntos cada mañana
Hoy tengo gans de ti, hoy tengo ganas de ti...

domingo, 25 de outubro de 2020

Enfastiamento


Há muito tempo que não leio um livro nem vejo um filme verdadeiramente empolgantes, daqueles que nos põem em causa, nos revolvem por dentro e nos deixam a pensar, ou nos apaixonam, enfeitiçam e se nos fazem inesquecíveis.
O último filme que me tocou dessa maneira foi talvez Dolor y Gloria,  de Almodóvar. Quanto aos livros, sinceramente, já não recordo o último que li de um fôlego, naquele entusiasmo bom de não conseguir parar.
E não sei se somos nós que com o tempo vamos tendo maior dificuldade em surpreender-nos e deixar-nos arrebatar, ou se é a criação que está também em crise, o que faz com que, no caso da literatura, por exemplo, mas do cinema, de igual modo, e se calhar de outras artes, se privilegie o entretenimento rápido e inconsequente e se publique muito, mas a qualidade seja em geral mais duvidosa ou difícil de alcançar. 
Acredito mais nesta segunda hipótese, hélas...

sábado, 24 de outubro de 2020

Hora de Inverno





É no dia em que muda a hora e temos de atrasar os relógios que sinto mais fortemente que o Outono está em pleno, quando na verdade há dias, ou semanas, até, que ele se vem fazendo notar. Não sei explicar, mas é como se esses sessenta minutos a mais fizessem toda a diferença, para além do óbvio que implica anoitecer e amanhecer um pouco mais cedo e da trabalheira de alterar tantos ponteiros.
E eu, que sou toda da luz e amo Primavera no seu exuberante colorido, também gosto muito do Outono e da sua doce melancolia, que faz a vida desacelerar. Gosto da alternância e da variedade das estações, dos dias compridos e claros depois da escuridão e da tristeza associadas ao Inverno, gosto da chuva que vem depois do sol, de mudar de roupas leves e frescas para outras quentes e macias, que nos protegem da aragem fria que começa a atravessar-nos a pele, sobretudo ao início ou fim do dia. E assim se vai modificando e seguindo lentamente a vida, quase sem nos apercebermos. 
Os melhores dias do Outono são os que ficam neste intervalo de tempo entre o fim das férias e o insuportável frenesim das Festas, quando tudo vai ainda fluindo devagar, as noites parecem enormes e sabe bem ficar em casa, preguiçosamente, no maior recato.  
O Outono é tempo de intimidade e de agasalho, de silêncios e de vozes baixas, de lanches no sofá e de bebidas quentes, de quietude, de afagos, abraços e aconchego, de ouvir a chuva nos vidros, de deixar-se estar. É por isso que este fim de semana  me deixo ficar mais aqui por casa, a celebrar o conforto e o sossego, até porque os tempos que vivemos também requerem recolhimento e cuidados redobrados.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Bucólica







Quem me conhece sabe como eu sou profundamente urbana e tenho tendência para preferir visitar cidades, em vez de me deleitar  a comtemplar paisagens campestres onde imperam os tons verdes e onde não "aguento" mais de dois dias seguidos sem me começar a aborrecer.  Se é natureza, então escolho a água, seja ela mar, rio, lago ou fonte, talvez por ser do signo de Peixes, ou apenas porque sim. Mas, desta vez, porque a pandemia nos obrigou a umas férias inteiramente nacionais e diferentes do habitual, lá fui enfim visitar um sítio muito falado e que andava há anos para conhecer. E rendi-me, de facto, à beleza inigualável das casas de xisto, aos caminhos pedestres por montes e vales, ao som inesperado da água a correr, ao silêncio e ao sossego dos lugares onde a vida parece de repente deter-se. É que mesmo para quem ama a agitação citadina, o sossego e o recato temporários  também podem saber muito bem e fazer-nos sentir em paz e harmonia, virando-nos um pouco mais para dentro, deixando a vida fluir tranquila e pensando que, por mais imperfeito que o mundo às vezes nos pareça, é um lugar imensamente belo e misterioso, que se nos revela e surpreende nos mais pequenos detalhes.

domingo, 11 de outubro de 2020

O fim das férias


Despeço-me da praia em Outubro, numa altura em que ela volta ao silêncio de que eu gosto e posso de novo sonhar preguiçosamente em frente ao mar, sentindo o sossego e a harmonia à minha volta. É nestas alturas que o mundo me parece perfeito, apesar de tudo.
Termino a época balnear um pouco mais tarde do que de costume, porque também a comecei em Maio, e não em Março nem Abril, como costuma ser o hábito. Amanhã é a minha "rentrée", depois de três maravilhosas semanas de férias inteiramente portuguesas, num ano muito peculiar e em tudo diferente dos outros. 
Agora, voltam as obrigações do quotidiano, os despertadores a horas demasiado matinais, os horários, as horas marcadas e tudo o que me ocupa nos dias "normais"; agora, vem o vento, o frio e a chuva, o tempo do recato e do aconchego, em que fico mais em casa, enquanto  vou pensando em voltar a ter uns dias para fazer tudo o que me apetecer. Na Primavera, talvez, se não for antes...