Devo estar a ficar velho. E, no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. (...) Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar os intervalos das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô me viesse fazer uma festa à cama. (...) Pensando bem (e digo isto ao espelho) não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.
Estas são palavras de António Lobo Antunes, no Livro de Crónicas, de 1998.
Recordo-as agora, porque de facto penso que a maior parte das pessoas (falo por mim) não sente ter a idade que tem, e porque o que sentimos na cabeça é sempre diferente da crueza dos números. Pode a pele enrugar-se e emurchecer, pode perder-se o viço ou desaparecer no olhar o fulgor de outrora, mas não esmorece a alma, nem deixa de pulsar o coração. É por isso que se diz que a idade está mais no espírito com que se vive do que no número que consta do bilhete de identidade; e eu só posso concordar. Conheço pessoas de vinte ou trinta anos mais "velhas" que muitas outras de setenta ou oitenta. Que importa afinal a idade que temos? Nos homens e nas mulheres agradam-me muito as marcas visíveis da passagem do tempo, nas quais não vejo qualquer sinal de decrepitude, mas antes a lúcida sensatez de quem acumulou vivências múltiplas e se permite ainda as mais arrebatadas e extravagantes loucuras, sem se importar com as opiniões alheias.
Recordo-as, também, porque tenho, muitas vezes, saudades do colo da minha mãe. Do tempo em que bastava dizer: "ó mãe!" para tudo se resolver; em que bastava ser embalada pelos seus braços fortes e bons para que todas as minhas dores passassem e os meus desgostos de menina se desvanecessem. Saudades das nossa tardes de Domingo, do seu riso e do seu bom humor, dos nossos abraços. Emociona-me e aflige-me em todas as horas de todos os dias não poder saber exactamente o que pensa e o que sente naquele seu mundo de silêncio, em que já nem pelo toque e pelos olhos nos deixam comunicar.
Recordo-as, sobretudo, nesta altura difícil para todos, mas especialmente para os que dada a fragilidade decorrente do peso dos anos e das marcas da vida, estão agora mais tristes e mais sozinhos, a sofrer calados.
E não podemos fazer nada?
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