terça-feira, 14 de maio de 2019

Escrever não é para todos



Tenho particular aversão pela quantidade crescente  de gente que "escreve", muitas vezes sem saber construir uma frase com sujeito, predicado e complementos. Já o disse muitas vezes. Pode-se aprender a escrever, mas nem todos saberão fazê-lo bem, pois esse é privilégio de quem já nasce com o dom, como acontece com todas as outras artes. E está para lá de toda a técnica e da prática, por maior que ela seja. (É por isso que abomino os chamados "cursos de escrita criativa", que pressupõem sempre uma espécie de receita). O equívoco reside no facto de a escrita (a literatura) usar como matéria-prima a palavra, que tem também valor utilitário, comunicacional.
Escrever bem não é pois alinhar palavras mais ou menos obtusas e criar um sentido que muitas vezes não é sentido nenhum. Escrever pressupõe sempre ler. Ler muito - antes, durante e depois. E se há livros e textos que nos tocam de maneira especial, é porque quem os escreve consegue aquele suplemento de alma que faz a diferença, um fulguração, uma conjugação feliz de sonoridade e ritmo, que produz um sentido e um encanto capazes de emocionar-nos.
A propósito deste assunto, li hoje um excelente texto de Pedro Correia no "Delito de Opinião", que diz muito do que eu penso. Isto, por exemplo:
Saber escrever, saber captar a atenção de quem nos lê - eis o desafio supremo, ao alcance de poucos. Aprendamos com os mestres da palavra a trabalhá-la. Como se fosse terra fértil lavrada por um camponês, como se fosse pedra esculpida por um escultor, como se fosse filigrana nas mãos de um ourives. 
Escrever é muito mais que alinhar palavras. Como durante anos ensinei aos meus estagiários em jornalismo, para escrever bem nada melhor do que ler muito. Enquanto leitores, aprendamos com quem sabe. Com Camus, que nos introduz no reino mágico da ficção - "a mentira através da qual se diz a verdade". Com Simenon, que em apenas três palavras nos transmite  uma das melhores lições: "Escrever é cortar."
É apelar à sensibilidade  e ao intelecto. Em simultâneo, o que não está ao alcance de qualquer um. Como Agustina bem demonstra na obra que nos foi legando. "Há qualquer coisa de premonitório neste romance. Pelos costumes das pessoas, pelos sentimentos, pelas relações entre parentes e familiares, percebe-se que já muita coisa mudou ou está em mudança antes mesmo de a revolução acontecer", observa António Barreto no prefácio à novíssima reedição d'As Pessoas Felizes.
Há muitas coisas belas na terra. E algumas experiências sem substituição possível, como o prazer único que só a leitura nos proporciona. Ao rasgar-nos horizontes e ao elevar-nos vários palmos acima do chão.

Sem comentários:

Enviar um comentário