Por um feliz acaso, tive ontem a oportunidade de assistir à antestreia do último filme de Pedro Almodóvar, em cartaz em Espanha desde Março e cuja exibição já tardava entre nós. E não sei se é por poder ser considerada suspeita (trata-se de um dos meus realizadores preferidos), ou por estar ainda sob o impacto que me causou, mas considero que este é um dos seus melhores filmes.
Dolor y Goria é o mais autobiográfico de todos, mistura de verdade e de ficção, ou como diz o próprio Pedro Almodávar: "Não é uma autobiografia, mas um filme cuja personagem principal poderia ser eu." Claro que é impossível não pensar nele enquanto acompanhamos Salvador Mallo, um realizador em crise, numa viagem no tempo através de fantasmas e vícios, brilhantemente interpretado por António Banderas. Mas ver nele o alter ego de Pedro Almodóvar é reduzi-lo ao que menos importa. É um filme que partindo do imaginário integra elementos pessoais; ou o inverso. E não é isso o que sempre acontece com a escrita, ou até com a arte? "La película no hay que tomarla en todo el literal (...) No hay que buscar quién es quién" diz-nos, também.
É um filme sobre o tempo e as relações humanas, sobre solidão e amargura, mas também sobre o perdão, a reconciliação e a salvação de si mesmo, sem nunca cair em ajustes de contas, ou assumir um tom de queixa demasiado confessional ou melodramático. E apesar da melancolia que atravessa toda a narrativa, há a elegância formal e a riqueza emocional que o tornam mais inteligentemente tocante, as cores vivas que são imagem de marca, e magníficas cenas como por exemplo a do reencontro de Salvador e Federico, ou a conversa do filho com a sua mãe no final de vida desta.
Depois, há também Penélope Cruz e a sua magistral capacidade de encher o écran, e Asier Flores num convincente e arrebatador papel de Salvador na infância. E como se tudo isto fosse pouco, há ainda Rosalía numa breve aparição na cena inicial, a fazer sua, como só ela sabe, a canção de 1962 "A tu vera".
Dolor y Gloria tem o brilho de quem sabe fazer muito bem o que faz que têm todos os filmes de Almodóvar, e é um daqueles belíssimos filmes dos quais se sai de "alma cheia", que nos fascina e ao mesmo tempo põe em causa e a pensar no nosso próprio caminho, porque enquanto o vemos fazemos também essa viagem introspectiva pelo nosso passado e presente, pelas nossas mágoas e os nossos fantasmas, pelas nossas dores e as nossas glórias, com tudo o que há nelas de vulnerável e de grandioso.
Não admira, pois, que António Banderas tenha recebido o prémio de melhor actor no Festival de Cannes, ou que o filme tenha sido o escolhido para representar Espanha nos Óscares do próximo ano.
Obra-prima ou não, este é um filme inesquecível, que não se pode perder.
O bom cinema é muito isto. É sobretudo isto...
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