quinta-feira, 10 de julho de 2014

Dedo na ferida


Entre muitas outras coisas que correm menos bem nas nossas escolas, há duas tremendas obsessões. As "grelhas" (de que já, de certo modo, falei aqui); e também as reuniões.
Reúne-se muito nas escolas. Demais. Reúne-se por tudo e por nada. Mais por nada do que por tudo. E perde-se um tempo infinito a "discutir" pormenores insignificantes, deixando de lado o essencial. É assim quase sempre e por todo o lado.
Não é que eu defenda a ideia do "cada um por si", mas não tenho dúvida que com apenas um terço das reuniões que se fazem actualmente, as escolas não funcionariam pior. Nem o ensino teria menos "qualidade". Quem, como eu, conhece pelo lado de dentro e de fora como as coisas funcionam, sabe que a generalidade das reuniões são ineficazes e improdutivas, que servem quase só para perder tempo e energias, que algumas se fazem apenas para cumprir calendário, ou são meramente informativas e se resolveriam com uma simples comunicação escrita. Há as que facilmente se estendem por três ou quatro horas - o que me parece muito para lá do aceitável - e cujo resultado prático é coisa nenhuma.
Ser professor,  já se sabe, não é nada fácil. E ainda assim, mesmo sabendo como eu sei hoje melhor que nunca, porque é com essa realidade que lido todos os dias, que trabalhar numa escola é cada vez mais uma profissão de risco, também tenho a certeza que muito do cansaço e da burocracia de que os professores hoje tanto se queixam são eles próprios que a inventam, complicando o que é simples, ignorando que o trabalho de ensinar e aprender se desenvolve maioritariamente na sala de aula e que é preciso tempo e disponibilidade mental para o preparar com rigor e cuidado, preocupando-se em ensinar o que não interessa - "orações subordinadas substantivas", por exemplo, - focados no imediatismo de "preparar para o exame" (que parece ser o seu objectivo máximo), em vez de levantar a cabeça e olhar para longe e pensar que importa acima de tudo fazer os alunos ler, escrever e pensar; e ver o mundo com outros olhos. Esquecendo que se um aluno estiver preparado para a vida enfrenta qualquer exame e o inverso não é tão verdadeiro, esquecendo-se de ser felizes, afogados em papéis, em grelhas mais ou menos complicadas que eles criam, e em relatórios que ninguém lê; calando-se quando devem falar, encolhendo os ombros a quase tudo, sem se questionarem, sem serem capazes de dizer não.
Não tem por isso razão Maria Filomena Mónica, que escreveu um livro baseado nos diários de não sei quantas professoras e mais umas alunas e uma encarregada de educação. Não pretende ser um estudo científico. Nem poderia. Não li o livro e, portanto, não quero alongar-me sobre ele. Mas vi um dia a autora a falar na televisão dizendo coisas do género: que hoje os professores não têm tempo para nada porque depois das aulas têm que ir para casa responder a inquéritos e preencher relatórios que o Ministério da Educação manda. Mudei de canal. Não sei quem lhe terá dito isto, mas não corresponde de modo algum à verdade. E é sempre mais fácil deitar culpas para quem está acima, seja o Ministério, ou o Governo, ou o que for.
Têm razão de queixa os professores, naturalmente, que são com frequência e de forma injusta pouco reconhecidos, desconsiderados, maltratados, mal pagos. Mas também são muitas vezes vítimas da sua passiva mediocridade, da sua impreparação e falta de cultura. Há excelentes professores, é claro, que fazem um trabalho notável em péssimas condições. Mas não serão, infelizmente, a maioria.
Sei do que falo porque, nesta profissão a que pertenço, há coisas de que me orgulho e muitas outras que quase me fazem corar de vergonha. Será igual em todas, decerto, mas falo só do que conheço.
Enfim, razoabilidade e bom senso é o que é preciso. E, se houvesse ao menos isso, já seria bom...

10 comentários:

  1. Bom texto. Visto de fora, aquilo que acho do ensino é que neste momento não prepara as pessoas para a realidade do mundo actual em que são necessárias outras competências para além da capacidade de responder a perguntas em modo "laboratório" (vulgo exame).
    Há uns tempos estava a ver o caso de uma mãe que tem duas filhas: uma toda despachada e com notas assim-assim, e outra muito insegura mas com notas excelentes. A preocupação da mãe é a primeira porque não tem grandes notas. A minha opinião é exactamente a contrária e aposto que na vida real, aquela que se vai safar melhor é a que tem piores notas, porque sabe criar empatia com as pessoas, tem confiança, uma boa dose de lata e perante uma dificuldade tenta ultrapassar procurando logo caminhos alternativos em vez de se encolher (como é o caso da irmã). Mas afinal o objectivo da escola não é preparar as pessoas para a vida da melhor forma possível? Eu temo que se não se fizer um trabalho mais abrangente no que diz respeito às competências a desenvolver, arriscamo-nos com o modelo actual a estar a criar futuros excelentes ex-alunos desempregados. E se estamos a falar de competências que se podem trabalhar e até aprender, e se são críticas para a vida futura porque é que a escola não as desenvolve em conjunto com as restantes matérias? Ou então isso já acontece e eu estou desactualizado.
    Claro que podemos queixar-nos que o mundo de hoje é feio, antigamente é que era bom, isto e aquilo. Eu prefiro assumi-lo a realidade que é.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Aquilo que diz, Sérgio, levanta uma série de questões que não vou ter tempo de explicar exaustivamente.
      Vamos com calma. Na escola os alunos aprendem a desenvolver outras competências para além de "responder a perguntas," como diz. Sou favorável à existência de exames, que quanto a mim deveriam existir nos finais de ciclo em todas as disciplinas e não apenas em Português e Matemática. Importa referir que há também a avaliação "interna" e que o peso do exame é relativo na avaliação final. Não façamos dos exames nenhum "papão" e há muitas coisas que estão mal no ensino, mas não é isso de certeza.
      O problema essencial é às vezes onde se situa o foco. A questão é que se dá muito relevância ao que interessa menos e se esquece o mais importante.
      (Dou-lhe um exemplo concreto da minha área: a minha afilhada concluiu agora o 2º ciclo. A Português teve uma professora que durante dois anos se preocupou essencialmente em ensinar gramática, esmiuçando-a até aos mais ínfimos pormenores e nunca ou muito raramente trabalhou a escrita e a leitura. Os poucos textos que os alunos dela escreveram naqueles dois anos foram os dos testes, cerca de seis por ano. A gramática só faz sentido se for para entender como a língua funciona e com isso utilizá-la com maior rigor e correcção. Já a leitura e escrita ajudam a estruturar o pensamento, entre outras coisas. Percebe?)
      Quanto à "preparação para a vida" também não concordo com essa ideia de estarmos a criar "futuros excelentes ex-alunos desempregados" sob pena de a escola incentivar o "desenrascanço" e o "chico-espertismo", já de si tão português, em vez do conhecimento. Uma preparação sólida de base é fundamental e vale para tudo e em tudo.
      Por fim, eu nunca digo que "o mundo de hoje é feio, antigamente é que era bom", mas devemos sempre tentar fazer mais e melhorar o que não corre bem como podia e deveria. É mais ou menos isto...

      Eliminar
    2. Estamos a divergir, mas imagine o seguinte caso: um bom aluno e um outro assim-assim concorrem a uma vaga de emprego. Ambos têm de convencer quem os entrevista que são a melhor opção para a vaga. O primeiro assenta a sua "argumentação" no facto de ter sido bom aluno, o que é meritório, claro. O segundo uma vez que não dispõem desta vantagem, estuda a empresa à procura de necessidades que esta tenha e que ele possa colmatar com as suas capacidades e conhecimentos, orientando (de forma empática) o discurso nesse sentido: em como vai acrescentar valor à empresa. No final quem irá ficar com a vaga? Eu aposto que em 99% dos casos o aluno assim-assim. "Chico-espertismo" e "desenrascanço"? Eu prefiro chamar preparação! E no final lá temos um bom aluno desempregado e um aluno assim-assim a chegar a director da empresa em poucos anos. Julgo não ser preciso muito esforço para encontrar muitos e muitos exemplos semelhantes a este aí pela rua.
      Mas melhor ainda é eu acreditar que caso ambos tivessem com a orientação e preparação correcta o que ia acontecer não seria um ficar empregado em detrimento do outro, mas antes que rapidamente os dois ficariam empregados.
      Não estou nunca a dizer que devemos dar mais valor a isto ou aquilo e que o conhecimento de base não é importante. Claro que é. Estou apenas a dizer que o mundo real é mais complexo que simplesmente fazer exames tal como os conhecemos hoje e que há muitas áreas de conhecimento (que também se aprendem), mas que não são tocadas na escola quando na minha opinião se deveria, uma vez que vão ser críticas para o futuro dos alunos.

      Não me alongo mais, mas sabe que gosto de ler as suas opiniões uma vez que as considero inteligentes (pronto, o monstro fez um elogio)... eheheheheh...

      Eliminar
    3. Nós divergirmos já é um clássico, Sérgio, mas isso não necessariamente negativo. O que lhe quis dizer é que a escola hoje também já é muito mais que fazer só exames embora não possa obviamente tocar em todas as áreas de conhecimento. Até porque se correria o risco de querendo tocar em tudo acabar por não se saber nada.

      O que importa é que ela abra caminhos e perspectivas, capacidade de argumentação, olhar crítico e curiosidade. Ninguém pode sair da Escola a saber tudo, mas pode (e deve) sair munido da cpacidade de depois "voar" sozinho.

      Quanto ao seu exemplo do aluno muito preparado e do "assim-assim" prefiro pensar que o muito bem preparado, se o for efectivamente, terá também discernimento suficiente para saber na entrevista convencer o entrevistador de que os seus conhecimentos e capacidades serão uma mais-valia para a empresa. Senão não será mais que um "nerd":P

      Eliminar
  2. Bom dia, Isabel!
    Não sou professora, mas convivo diariamente , há mais de 30 anos, com um professor que lecciona vai para 37 anos. Por isso, estou por dentro do que acabo de ler . Tem toda a razão! Mais! Este texto ou parte dele devia estar afixado num lugar de destaque! Não quero ser desagradável mas várias vezes comento aqui em casa que as confusões que se passam no ensino devem-se a uma classe com falta de alguma cultura e pouco coesa . Parece que vivem num cerco escolar , apenas e tão só!
    Ultimamente convívio com esta classe e com elementos já na reforma. Fico parva como as suas mentes são tão fechadas para o mundo! Bom, não me quero alongar mais.
    Beijinhos e bem haja!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pode talvez pensar-se que me fica mal dizer isto, relativamente a uma classe a que também pertenço. Mas é justamente por pertencer-lhe que estou mais á-vontade para "pôr o dedo na ferida". Sei muito bem do que falo...
      Não se trata de achar que sou melhor que os outros, mas não consigo deixar de dizer o que penso e não vou em "corporativismos", nem nada disso.
      A vida dos professores não é particularmente fácil, mas eles adoram complicá-la ainda mais. É um facto. E acho, sinceramente, que muito da imagem social que hoje se tem dos professores é culpa deles mesmos. Basta ver as manifestações e o tipo de intervenções públicas...

      Fico por aqui. Mas tinha tanto, tanto, para dizer...

      Beijinho

      Eliminar
  3. Permita-me que sublinhe o último parágrafo do texto: "Enfim, razoabilidade e bom senso é o que é preciso. E, se houvesse ao menos isso, já seria bom..."

    Quanto ao texto, nada a dizer. Isto é, muito bom.

    Beijinho, Isabel, e bom fim de semana.-

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Permito, com certeza.
      Na verdade, grande parte daquilo de que as pessoas se queixam depende essencialmente delas... E bastaria ter algum bom senso. E pensar...

      Obrigada. Bom fim de semana também para si. Beijinho

      Eliminar
  4. Concordo em absoluto. Inventam e de que maneira. Mas o Ministério também ajuda ao desvario. Estamos completamente afogados em papelada, física ou virtual e em reuniões e equipas de trabalho que nada produzem. Fed up, ainda por cima pessoalmente tive mesmo um ano para esquecer (e não fui a única, sei). Excesso de trabalho e nenhuma, nenhuma compensação. Beijinho solidário :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Fátima, o Ministério neste caso tem apenas "as costas quentes", embora haja nele também muito de criticável. Os professores, como sabe, adoram queixar-se do "Ministério" assim em termos mais ou menos abstractos, mas não é de certeza o Ministério que os "obriga" a fazer reuniões de três e quatro horas, ou a preencher "papelada" que eles próprios inventam.
      Vou dar-lhe este exemplo concreto, já que tenho agora uma visão um pouco mais abrangente do que se vai passando nas escolas. O Estatuto do Aluno prevê para os alunos com excesso de faltas injustificadas, actividades de recuperação da aprendizagem (é discutível, claro, mas está na lei). No entanto, a lei diz (artigo 20º) que elas "apenas podem ser aplicadas uma única vez no decurso de cada ano lectivo".
      Ainda assim, a maior parte das escolas que eu conheço ( e eu conheço muitas...) entende isto como "uma vez em cada disciplina". Agora diga-me lá se os professores não gostam de "inventar" trabalho, daquele que não serve para coisa nenhuma...
      Podia multiplicar os exemplos, mas acho que não vale a pena continuar a falar-lhe daquilo que sabe tão bem como eu.
      Enfim...

      Beijinho para si e boa férias!

      Eliminar