sábado, 8 de setembro de 2018

Regressar ao passado




Quando eu era pequena, os meus avós paternos tinham uma casa de férias na zona de Abrantes de onde eram originários, embora na época vivessem na Baixa, em Lisboa, havia já largos anos. 
A casa tinha sido concebida pelo meu avô apesar de ele não ser arquitecto e, por isso, era para toda a gente um lugar especial, excepto para a minha mãe, tão citadina como eu, que abominava o "campo", e para quem aquele mês de Agosto passado com a família do meu pai, longe da "civilização", era um enorme aborrecimento.
Para mim e para a minha irmã, no entanto, os dias inteiros passados ao ar livre e em contacto com a terra, literalmente, eram sinónimo de aventura e liberdade.
Fazíamos a viagem de comboio, a partir de Santa Apolónia, e tudo me parecia grandioso: os comboios, a duração do percurso, a quantidade de bagagem que transportávamos, a azáfama das partidas e o mistério que encerram, por mais que fosse familiar o destino e as rotinas que nos esperavam.
Depois, os meus avós morreram e acabaram-se as férias no "campo", teria eu uns oito anos, mais ou menos. A partir daí, raras vezes voltámos a Alferrarede e a casa acabou mesmo por ser vendida passados alguns anos. Nunca mais lá voltei. Mas conservei sempre memórias desse lugar de infância, com todas as cores, cheiros, sons, sabores e episódios mais ou menos marcantes de um tempo tão longínquo.
Em Dezembro passado, por uma feliz coincidência, voltei a Abrantes num dia cinzento e de chuva miudinha. Tinha ainda uma vaga ideia do castelo e da vista sobre a cidade, mas não recordava mais nada. Só o sabor das tigeladas e da "palha" me souberam ao tempo da infância. E, como era mesmo ao lado, acabei por ir também a Alferrarede. A terra estava já muito diferente, mas a rua e a casa das antigas férias de Verão continuavam quase iguais, como se ali o tempo  tivesse parado inexplicavelmente. Lá estava a mesma passagem de nível onde íamos ver passar os comboios que tanto fascinavam o meu pai, o campo muito verde ao lado da casa, de onde se via o castelo, o empedrado incerto da rua lateral com ares da província, e até o portão verde em cujo degrau fingíamos estar sentadas no autocarro apenas perdera o JM prateado - as iniciais de João Mouzinho -, que o meu avô exibia com indisfarçável orgulho.
A senhora que comprou a casa e vive lá agora, vendo-me rondar a casa e espreitar o quintal de forma descarada, apareceu intrigada a perguntar se queria alguma coisa. Expliquei-lhe quem era e o que me levara ali. Então ela, que tinha conhecido o meu avô, convidou-me a entrar com a natural simplicidade que só as pessoas da aldeia conseguem ter e mostrou-me tudo: a casa, o quintal e a horta; o poço, o tanque e a nora; as laranjeiras que o meu avô plantou e ainda dão excelentes laranjas; e aquele espaço enorme, que antes me parecia uma floresta sem fim e um mundo de magia, arrojo e descoberta.
Que incrível emoção essa viagem no tempo, feita não só com a cabeça, mas com o coração e o corpo inteiro!... Comoveram-me as histórias da família, os elogios ao meu avô, a simpatia com que fui recebida naquela casa que fora nossa durante tanto tempo e, acima de tudo, ver como tanto do que eu vivera naquele lugar permanecia quase intacto: os canais da rega que eram um oceano para os nossos barcos de papel, o palheiro onde dormia o burro que andava à nora para tirar a a água do poço, o tanque que para nós era também piscina, a cozinha com um enorme fogão, tudo com o mesmo ar ainda antigo como se os anos se tivessem demorado mais ali e quase não tivessem passado.
Foi um dia que não poderei esquecer. Não por saudosismo, nem por nostalgia desse passado que tinha coisas boas e más, como é próprio de todos os tempos. Mas  recordar lugares, pessoas, histórias e momentos nossos, não faz mal nenhum. Porque a memória também é uma coisa boa; e porque é bom revisitar o que de alguma forma nos pertence e foi fazendo de nós muito do que somos.
Depois daqueles Verões de infância em Alferrarede, a minha ligação ao campo desvaneceu-se para sempre. Mas talvez o que revivi ali, naquele dia cinzento de Dezembro, me tenha ajudado a entender o prazer que sinto em voltar muitas vezes aos lugares que me tocam, seduzem, encantam.

3 comentários:

  1. Porque gosto de fotos que tem retalhos de objecto, casas, paredes, muros, como se fossem uma dita manta de retalhos! Eu mesmo sendo fotógrafo amador o faço com alguma regularidade!

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