terça-feira, 3 de junho de 2014

Preparar o Rocío

 
Os dias que antecedem o Rocío vivem-se no desassossego dos preparativos, que são já parte da festa.
Retiram-se dos armários os vestidos compridos, que voltam a experimentar-se, na ânsia de ver se precisam de ser apertados ou alargados consoante os anos nos foram retirando ou acrescentando centímetros em zonas críticas. Ou para adaptá-los à moda do momento, com mais ou menos folhos, curvas marcadas, tecidos lisos, ou com os tradicionais lunares, no alegre colorido que antecipa os festejos e que logo evoca Espanha, cor, sol, luz, palmas e olés. E música, muita música...
Escolhem-se criteriosamente as roupas para cada dia, o vestido para a noite de Sábado, ou o fato para assistir à saída da Virgem; combinam-se cores e adereços, e nada, mesmo nada, é deixado ao acaso: a medalha de romero que se exibe no peito com indisfarçável orgulho rociero; os penteados previamente ensaiados, cabelo solto ou apanhado, a flor no alto da cabeça ou de lado, mesmo por trás da orelha direita, mais a peineta para compor e aprimorar a toilette; e os brincos, que são também obrigatórios. Grandes, para aquele ar mais gitano, reconhecível ao primeiro olhar. E depois ainda as botas, claro, que ajudam a caminhar na areia.
Voltam a ouvir-se as sevillanas rocieras, relembram-se os passos entretanto adormecidos num canto da memória, e quer-se adiantar o calendário para que tudo aquilo que sabemos tão especial possa ser realidade mais depressa.
Acertam-se os últimos detalhes até que vem finalmente o dia em que se ruma para sul e emocionado se chega por fim à aldeia, onde durante dois ou três dias se vive alheado do mundo, naquele universo que só compreende quem o conhece e o sente na pele e no fundo da alma, ao entoar a salve rociera num coro que arrepia, ou entre sevilhanas misturadas com o toque dos sinos e os foguetes, vivas à Blanca Paloma, reina de las marismas, a flauta e o tamboril, a frescura do sabor do rebujito, o trote dos cavalos e o chiar das carroças, em incessante corrupio, de dia e de noite, pelos caminhos de pó.
Há uma parte considerável do prazer da festa que se vive na sua preparação, na excitação do que se espera e na antecipação do que está mesmo a chegar.
Mas é ali, naquele lugar que parece encantado, na quietude da marisma, em silêncio diante da Virgem, ou no tumulto alvoroçado e aparatoso da Romaria, entre risos, lágrimas incontidas e emoções à flor da pele, em genuína celebração da fé, que o nosso lado mais interior e emocional se fortalece e a vida ganha mais plenitude e mais sentido.
 

2 comentários:

  1. Pelo que descreve há uma forte liturgia envolta em crença, alegria e fé; quase uma catarse colectiva em busca da purificação das almas. Só experimentando mesmo.

    Assalta-me uma dúvida: e o pó na cara e nas vestes...? Muito "5 a sec" e alguns histamínicos, não?

    Beijinho, amiga rociera :)

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    1. É um pouco isso, sim, Paulo: crença, alegria e fé! Tudo junto em gigantesca celebração.
      Dou-lhe um bocadinho conta da minha experiência; quando no ano 2000 fui pela primeira vez à Romaria, ia numa perspectiva de curiosidade, antes de mais (aquela tal que "matou o gato") e quase de turista: vamos lá ver como isto é!

      Tinham-me emprestado uns fatos de flamenca que eu levei, mas pensando "vou-me lá agora mascarar..."

      E depois chega-se lá e tudo aquilo é emocionalmente tão forte que é impossível vivê-lo de fora, sem se sentir implicado. Claro que me vesti de flamenca, porque estando lá isso faz todo o sentido.
      Depois tive a oportunidade (e o privilégio) de acompanhar a irmandade de Badajoz na apresentação à Virgem. E é tudo tão forte e tão bonito que desatei a chorar. E foi aí, nesse momento de profunda alegria e interioridade que senti fortalecer-se a minha fé, a qual andava na época bastante adormecida. E em que me prometi, como nos ensinam os "almonteños" que "simepre que pudiera yo tenía que ir a verla".
      Na verdade identifico-me muito mais com essa maneira festiva de viver a fé, (à espanhola) do que com a nossa "lamúria" (à portuguesa), que eu respeito mas me diz muito menos. Porque conjuga a espiritualidade com a partilha.

      Depois daquele ano 200 já voltei ao Rocío muitas vezes, na Romaría e fora dela e é um daqueles lugares mágicos que recomendo a toda a gente.(crente ou não).
      Hoje, trago sempre comigo uma medalha da Virgem do Rocío e acredito qque ela me acompanha a me protege, assim como a todos aqueles por quem lhe rezo ;)

      Dizem os "rocieros" que "El Rocío no se puede contar. Hay que vivirlo". é um lugar comum, mas é mesmo verdade. e quem vai uma vez quer sempre voltar...

      Quanto às suas dúvidas: muito pó, sim, que também faz parte, mas só é mesmo problemático se houver muito vento, o que em geral não acontece.

      Agora: consegue imaginar a minha alegria por estar a dois dias de voltar a viver tudo isto?
      Prometo contar tudo!

      Beijinho :)

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