terça-feira, 22 de outubro de 2013

O Segredo dos Seus Olhos


Delito de Opinião é o único blogue colectivo que eu leio e é também um dos meus preferidos, como já disse aqui muitas vezes. Gosto, sobretudo, da diversidade de temas, de opiniões e de estilos que nele encontro, embora não goste nem concorde com tudo. E ainda bem!
Hoje, de novo, um texto de Pedro Correia com o qual me identifico completamente.
Só vi este filme uma vez. Mas marcou-me tanto que posso dizer sem hesitar que é um dos filmes da minha vida. E porque este é o texto mais bonito que já li sobre ele e porque o Pedro diz melhor que eu o que também sinto, como isto, por exemplo, (detemo-nos em quê quando as palavras desmentem o olhar?), aqui ficam as suas palavras sobre esta obra-prima  muitíssimo recomendável. É um filme  obrigatório...

O SEGREDO DOS SEUS OLHOS: VER PARA CRER
 
«Se de noite chorares pelo sol não verás as estrelas.»
Tagore
 
Um crime chocante permanece impune durante um quarto de século. Não será nenhum prodigioso detective nem nenhum superjuiz a solucioná-lo, muito depois de o processo ter prescrito, mas um banalíssimo funcionário judicial de Buenos Aires. Que, ao desvendar a autoria e o móbil daquela violação seguida de homicídio, decifra ao mesmo tempo um enigma que lhe toldou os melhores anos da existência.
Ele, que tão bem soube interpretar o significado de um olhar perturbado numa velha fotografia, funcionando como chave daquele crime, fora incapaz de perceber que noutro par de olhos, em nada relacionado com o primeiro, estava afinal o grande amor da sua vida. Um amor talvez correspondido, ao contrário do que ele sempre imaginara, tolhido pela sua eterna insegurança e por uma infindável teia de convenções sociais.
 
Há filmes que nos conquistam pelo inesperado. Aconteceu-me com este. O Segredo dos Seus Olhos, produção hispano-argentina de 2009 que viria a receber o Óscar de melhor filme estrangeiro (isto é, de língua não inglesa) no ano seguinte, cruza de forma brilhante as convenções da ficção cinematográfica, transcendendo-as. Tem algo de filme negro, tem algo de Casablanca, tem algo do cinema político dos anos 60 e 70 cultivado por cineastas tão diferentes como Alan Pakula e Costa-Gavras. Mas não se confina às fronteiras de nenhum género.
Mais do que um policial com um enredo capaz de nos prender do princípio ao fim. Mais do que uma viagem a um tempo de trevas políticas na Argentina, capaz de se infiltrar nas ínfimas minudências de um quotidiano sem esperança. Mais do que um comovente romance, capaz de aproveitar todas as regras clássicas do melodrama para lhes dar novo fôlego e novas asas. Uma obra-prima, sem dúvida.
É um enredo que se desenrola noutro continente e noutro hemisfério, distantes dos nossos. Mas podia passar-se aqui, podia repetir-se aqui, este Benjamín Esposito de barba e gabardina (numa interpretação superlativa de Ricardo Darín) podia ser um de nós, esta Irene Menéndez Hastings, magistrada do Ministério Público, podia habitar no prédio onde vivemos. Porque não existe linguagem mais universal do que a do cinema.
 
Esta belíssima longa-metragem do argentino Juan José Campanella -- baseada no romance La Pregunta de Sus Ojos, de Eduardo Sacheri, co-autor de um "extraordinário guião sem nenhuma fissura", como bem sublinhou Carlos Boyero no El País -- tem, desde logo, o mérito de ser muito bem escrita. O que se detecta de imediato nas palavras de abertura: "O dia 21 de Junho de 1974 foi o último em que Ricardo Morales tomou o pequeno-almoço com Liliana Colotto. Lembrar-se-ia de cada pormenor dessa manhã até ao fim da vida."
Com apenas 23 anos, recém-casada, esta atraente professora foi assassinada da forma mais bárbara. Benjamín, chamado ao local do crime, jamais esquecerá as imagens daquele corpo trucidado por uma torrente de ódio. A morte dela mudaria para sempre várias vidas. Como só muito tarde saberemos, como só demasiado tarde saberão alguns dos envolvidos. Oficialmente, tudo ficará por esclarecer. Porque há verdades que a justiça deliberadamente ignora.
Mas, mesmo quando todas as bocas se silenciam, "os olhos falam".
Ensina-nos Benjamín, comunicando com a máscara aparentemente imperturbável de Irene, sussurrando para o mais fundo de si próprio neste filme onde os diálogos se abeiram da perfeição.
Algum dia se reencontrarão antes que sobre eles se abata aquilo que há de irreversível no crepúsculo de cada destino humano?
 

 Ele, a partir de certa altura, gasta o melhor do seu tempo a mirar para trás, como se ainda redigisse autos de inquérito na decrépita Olivetti que havia perdido a letra A.
Ela atira-lhe sem rodeios, "fingindo completamente", como Fernando Pessoa tão bem fixou: "Toda a minha vida olhei em frente. Para trás não sei olhar: não é a minha jurisdição, declaro-me incompetente."
Detemo-nos em quê quando as palavras desmentem o olhar?
Esta é a história de um amor impossível. A história de um desencontro. A história de uma fotografia. A história de um crime que permanece sem castigo -- ou pelo menos assim o imaginamos. A história de instantes irrepetíveis, capazes de mudar uma vida, qualquer vida, a minha, a tua, a daquela mulher que decide correr no último momento na plataforma da estação ferroviária, a daquele homem que a contempla a uma distância crescente do interior da carruagem.
Vi várias cenas destas no cinema -- O Segredo dos Seus Olhos é uma das mais recentes de uma nobre, vasta e fascinante linhagem de filmes com momentos decisivos passados em comboios (aqui fica a sugestão de um ciclo temático para a Cinemateca de Lisboa).
 
Por vezes só um desencontro permite reencontrar-nos connosco próprios. E decifrar todos os enigmas, não da tela mas da vida. Vendo uma velha fotografia, desvendando o véu da esfinge que se abriga na memória de um olhar.
E podemos então interrogar-nos, à semelhança do que ele disse enfim para ela: "Como se pode viver uma vida vazia? Como se pode viver uma vida cheia de nada?"
Com o comboio a acelerar, o contorno das figuras diminuindo na razão inversa do aumento da distância, uma existência em fragmentos prestes a dissolver-se no horizonte.

 

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