quarta-feira, 5 de março de 2014

O aviltamento da língua



Não posso deixar de voltar ao assunto do Acordo Ortográfico que, contariamente ao que muitos nos querem fazer crer, é importante e diz-nos respeito, a todos - e não apenas a especialistas da área, ou a escritores, jornalistas e professores (como já ouvi).
Vasco Graça Moura, que eu muito admiro e que tem sido um dos maiores defensores da Língua Portuguesa, volta também a referir-se-lhe, hoje, na sua habitual coluna de opinião no DN, que, como sempre, vale a pena ler
Não resisto, ainda assim, a deixar aqui um excerto: 
(...) aí vai a conclusão que tirei e que tem o seu quê de melancolicamente lesivo da língua que falamos: nenhum ou quase nenhum dos deputados está de acordo com o acordo! Houve quem se pusesse de acordo para salvar internacionalmente a face, quem se pusesse de acordo para proteger o negócio da edição escolar, quem o fizesse em nome dos ritmos de adopção do dito nos outros países, quem o fizesse em nome dos mais variados interesses. Mas não houve ninguém com peso significativo no Parlamento que fizesse oscilar a balança a seu favor pondo-se de acordo contra o acordo através do seu voto.(...) É assim que se manifesta na Assembleia da República a vontade do povo português? (...) Infelizmente é a uma situação de surrealismo delirante que se está a chegar. A língua está a ser destruída. Não conheço hoje muitos políticos que sejam a favor disso. Se falarmos de outros utentes qualificados, também não, salvas as excepções menores do costume e as propensões para a cedência do costume. E estamos a falar de Portugal. Se passarmos a Angola temos uma noção de como se pode e deve defender a língua de um país, das suas tradições, da sua cultura, das suas relações humanas e sociopolíticas, enfim, da sua identidade. Quanto ao Brasil, faz o que entende e não se sente vinculado por uma série de baboseiras que, está mais do que demonstrado, são perfeitamente inconstitucionais no nosso país.
Tudo isto não podia vir mais a propósito do que ontem me deixou em verdadeiro estado de choque: a declaração de um deputado (do meu partido, o que ainda me envergonha mais!) na Assembleia da República.
Apesar de muito triste, é necessário vê-la para se ter a noção clara de quem nos representa.
Há nesta declaração uma frase lapidar, que verdadeiramente me "mata". Esta:"Este Acordo é sobre a ortografia portuguesa e não sobre a língua portuguesa".
Prefiro nem a comentar!
Mas persistir num erro apenas porque "o acordo foi aprovado" e por causa do "longo esforço de editores e todo um percurso" parece-me, isso sim, uma "cegueira", para não dizer pior, ou pelo menos revelador de uma visão de horizontes demasiado limitados. Se não percebem nada do assunto, perguntem a quem sabe. Informem-se, leiam e - se for possível - pensem!
Isto não é irrelevante, como muitos julgam. Afinal a língua é o que nos estrutura o pensamento, a forma de o comunicar, o que nos define enquanto povo, o nosso património cultural.
A este deputado, em particular, apetecia-me oferecer o livro de Pedro Correia que já muitas vezes referi: "Vogais e Consoantes politicamente incorrectas do Acordo Ortográfico", o qual esclarece tudo muito bem, em linguagem acessível.
Mas acho que não valeria pena. Estou certa de que não o leria, alegando "falta de tempo". O típico!...
Enfim, como dizia o editorial do Público de 28 de Fevereiro, o dia em que a AR decidiu, uma vez mais, fazer "coisa nenhuma": O AO é, desde o seu início, uma enorme ilusão e um gigantesco erro. À falta de coragem para lhe pôr termo, estamos condenados a ver arrastar, penosamente, o seu cadáver adiado.
É uma infeliz realidade mas, na sua pequenez e tacanhice, o meu país, muitas vezes, entristece-me e envergonha-me!

4 comentários:

  1. O que terá (des)inspirado Telmo Correia?
    Não havia necessidade, senhor deputado.

    Tem razão Vasco Graça Moura.

    Um pormenor a salientar: os portugueses maximizam o AO enquanto os brasileiros fazem o que entendem.
    Será isto um acordo?

    Não é o País que envergonha mas sim as pessoas que têm influência sobre as coisas. Ou pensam que têm e a malta assobia para o lado.

    Beijinho, Isabel.



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    1. Pois, é melhor eu nem dizer nada... Até costumo gostar de ouvir Telmo Correio. Mas pergunto-me, agora, se noutras matérias, que não domino, não haverá "barbaridades" semelhantes. Apesar de achar, enfim, que todos temos direito a "um mau momento". E este foi péssimo...

      Isto é mais um (des)acordo, sem pés nem cabeça. No mínimo!

      O rpoblema, diria, é estarmos "nas mãos" de muita gente impreparada, que não reconhece a sua impreparação e acha que sabe tudo e pode tudo. E a verdade é que pode mesmo... :(

      Beijinho, António.

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  2. Já tinha saudades de comentar este tema... eheheh ;)
    Parece-me que houve aqui um erro na gestão deste tema (já vem de longe), em que se tentou "impor" um acordo sem antes ouvir os intervenientes/interessados no processo. Como sempre acontece nestes casos, mesmo que o acordo fosse excelente (não tenho conhecimentos técnicos para avaliar se sim, se não), quem sente que deveria ter sido consultado e não o foi, tende a rejeitar à partida. É sempre assim... Depois entra-se num jogo de ataques mútuos, o caso torna-se pessoal, a lógica dos argumentos deixa de ser o que menos interessa e muito menos questões de natureza técnica, e claro, ninguém quer dar o braço a torcer afinal há muito que se saiu do patamar da racionalidade (aliás, a via do ataque normalmente só "endurece" ainda mais as posições). E agora, o que fazer?

    Estes dias ouvi o sr. Vasco Graça Moura falar sobre o acordo e pareceu-me alguém com uma postura equilibrada (não entra em extremismos de linguagem), para além de tecnicamente esclarecido. Parece-me que seria uma boa pessoa para liderar um grupo/comité, para revisão do acordo. Por um lado ia agradar aos opositores (do acordo), por um lado espera-se do mesmo o bom senso e habilidade para gerir as sensibilidades dos defensores (do acordo), para que cada uma das partes não se sinta melindrada. Mas então perguntam os opositores, porque não se vai antes pela via da força bruta, incluindo insultos, etc.? A mim parece-me que este é um jogo em que o empate dá vantagem aos defensores (muito barulho mas a realidade é que o processo está a avançar…), pelo que o interesse principal em desatar o nó é dos opositores.

    Em suma, como acho que o processo deveria ser gerido: com muito jeitinho…

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    1. Sérgio: não gosto de ouvir dizer "O sr." Vasco Graça Moura, como o senhor Manel da mercearia, sem desprimor para o merceeiro. Vasco Graça Moura é um poeta e muitas outras coisas sobejamente conhecido da vida cultural portuguesa. basta por isso dizer Vasco Graça Moura. Ou também diz "o sr." Camões? Peço-lhe desculpa, mas sou sensível a estas coisas e hoje não estou no melhor dos meus humores.

      Quanto ao AO, continuo a achá-lo uma calamidade e lamento que não haja vontade política de pelo menos revê-lo ou alterá-lo. Mas este país é isto...

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