Sou suspeita. Tenho pelo flamenco uma paixão desmedida, que surgiu quase inesperada e depois cresceu, fazendo-se mais profunda e mais intensa ao longo do tempo, ainda que, como é próprio do que vem do coração e só pode sentir-se, não a consiga explicar. Só sei da emoção daquela música que se me entranha na pele e na alma, que me arrepia e me comove, que me abala no mais fundo de mim e que se me tornou indispensável, fundamental.
Por isso já vi muitos artistas e assisti, até hoje, a muitos espectáculos de diversos tipos, e a excelentes interpretações, de canto, de dança, de guitarra, de palmas, ou de tudo junto. Tantos, que nem sei se os recordo a todos. Assim, de repente, vêm-me à memória Paco de Lucía, Canales, Estrella Morente, La Yerbabuena, Rafael Amargo, Cigala...
Ontem, foi a vez de Miguel Poveda. Conhecia-o há algum tempo, lembro-me de como me impressionou desde logo a sua voz poderosa, ou o inesquecível tema A Ciegas, no filme de Almodóvar, Abrazos Rotos. E tenho até um disco dele, de que gosto muito: Coplas del querer.
Mas ao vivo é outra coisa. Agora posso entender de maneira mais exacta e rigorosa por que é considerado o melhor cantor flamenco da actualidade.
E, no entanto, Miguel Poveda não é apenas um cantor de flamenco; é, sem dúvida, um dos melhores intérpretes da música mundo que, sem renegar a sua música de raiz, o seu ponto de partida, canta também a copla (canção popular espanhola), ou as palavras dos poetas (Lorca, Miguel Hernandez, Rafael Alberti, entre outros), expressando-se em diferentes géneros, cruzando sonoridades, incorporando um leque vasto de referências e influências, aventurando-se até pelo fado, e demonstrando assim que flamenco e fado não são no fundo mais que o avesso e o direito de uma mesma inquietação interior, de uma dor pungente, que explode repentina, torrencial, incontida. E que o flamenco não é apenas cigano, ou andaluz. Porque, apesar de possuir dotes artísticos excepcionais, Poveda é de origem catalã e nasceu numa família sem tradição musical.
O espectáculo de ontem chamava-se "Íntimo" e foi de intimidade que se tratou. Acompanhado apenas pela guitarra de Chicuelo e o piano de Joan Albert Amargós, ambos virtuosíssimos também, foi a figura franzina de Miguel Poveda, as mãos enormes e a garra imensa daquela voz única, tão poderosa que quase dispensava microfone, que dominaram a noite, numa entrega apaixonada que se exprime com o corpo todo e que, misturando originalidade e inovação, tradição e modernidade, nos traz o encanto e a magia da música, nos silêncios e nas voltas do canto.
Depois de uma noite como esta não se é o mesmo. Impossível não se sentir tocado pela garra e o arrebatamento que desfilam diante de nós durante duas horas e meia, pela emoção à flor da pele que também nos estoura no peito, pela simplicidade e cercania do que não deixa de ser um acto de amor.
É que, no fim, como ele próprio disse ontem: deixou-me um pouco de si e leva com ele um pouco de mim.
Não sou apreciador do flamenco, Isabel.
ResponderEliminarBeijinho
Felizmente, não gostamos todos das mesmas coisas. Em termos musicais, eu não gosto de ópera, por exemplo.
EliminarBeijinho
As paixões, como outras coisas não se explicam, mas podem-se documentar e a sua explicação - mesmo explosivamente apaixonada - é muito válida e edificante. Resta, talvez, acrescentar que o Flamenco é Património Imaterial da Humanidade há muito mais tempo do que o Fado. Gosto do tango, do fado e do flamenco, por esta ordem. Mas também gosto de ópera e opereta, enfim, de todo o bel canto.
ResponderEliminarBeijinho :)
Ainda estava sob o feito que o concerto teve em mim e por isso o meu texto é tão "explosivamente apaixonado".
EliminarTambém gosto de tango e de fado, depois do flamenco (por esta ordem). :)
Agora o bel canto é que já não faz o meu género. Mas gosto de jazz e de blues, por exemplo.
Estava aqui a preparar-me para ir à minha escola (daqui a pouco) falar sobre Metas Curriculares e pensava justamente que a leitura, a literatura, modifica-nos. Como a música. Ou se calhar esse é justamente o efeito que arte tem em nós, além da fruição estética mais imediata.
Sei lá, ponho-me para aqui a pensar em mil e uma coisas...
Beijinho :)