quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Monstruosidade linguística




Como se não bastasse aquela aberração que dá pelo nome de Acordo Ortográfico, há hoje uma calamidade ainda maior, cujas consequências são incalculáveis e seguramente devastadoras no ensino e na aprendizagem do Português: a imposição  de novos conceitos e termos linguísticos, excessivamente discutíveis e complexos, sobretudo atendendo à faixa etária e ao grau de conhecimentos do público a que se destinam.
Conhecida inicialmente como a nova TLEBS (Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário) deveria ter começado a ser aplicada em 2006/2007, nos 3º 5º e 7º anos de escolaridade. Dada a polémica surgida na altura, que suscitou acesa discussão pública e motivou os mais acalorados debates e artigos de opinião, a TLEBS foi suspensa e substituída depois pelo DT - a sigla, que deveria significar "DemênciaTotal", mas na verdade quer dizer "Dicionário Terminológico" - que  fez algumas (poucas) alterações à TLEBS e entrou em vigor no ensino do Português, perante a passividade e o silêncio generalizados.
O novo Programa de Português do Ensino Básico (PPEB) iniciou-se no ano lectivo de 2011/2012, para os 1.º, 2.º, 5.º e 7.º anos de escolaridade, de acordo com o disposto na Portaria n.º 266/2011, de 14 de Setembro.No presente ano lectivo, os alunos do 1º, 2º, 5º, 7º, 10º 11º e 12º anos estão a estudar os conteúdos gramaticais de acordo com os termos definidos no Dicionário Terminológico, enquanto que os restantes alunos do 3º, 4º, 6, 8º e 9º anos estão ainda a aprender a terminologia definida na gramática tradicional.
É assim que, hoje, se ensina a um aluno do 5º ano, por exemplo, que um ditongo é uma sequência de vogal e semivogal (cujo conceito é extraordinário para crianças de 9 anos) e que os ditongos podem ser crescentes ou decrescentes, consoante a semivogal está antes ou depois da vogal.
E outras barbaridades semelhantes: Os complementos circunstanciais desapareceram e foram substituídos por modificadores, complementos oblíquos e afins. Hoje, um aluno do secundário tem que dizer: "isto é uma oração subordinada adjectiva relativa explicativa", tem de saber os mecanismos de coerência e coesão textual, que incluem coisas tão mirabolantes como catáforas e anáforas, tem de saber classificar os actos ilocutórios e aprender figuras de estilo totalmente abstrusas como zeugma, quiasmo e hipálage, só para dar alguns exemplos. Isto, quando a maior parte dos alunos, mesmo do ensino secundário, tem sérias dificuldades na interpretação de textos e enunciados, dificuldades de expressão oral e escrita e precisa, antes de mais, de aprender a pensar, de desenvolver o espírito crítico e a capacidade de argumentação, de aprender o prazer da leitura e de conhecer os autores de língua portuguesa.
É essencial perceber-se o absurdo da imposição desta terminologia de forma generalizada, em todos os anos e níveis de ensino, quando ela apenas pode interessar os especialistas em Linguística, dado o seu tecnicismo de elevado grau e, mesmo entre eles, não é consensual.
O que se consegue com isto? Confundir os alunos em primeiro lugar e, depois, fazer com que acabem por não saber coisa nenhuma, que aumente o insucesso e, mais grave ainda, que tudo isto contribua para os afastar cada vez  mais da língua, da literatura e da cultura portuguesas.
Afinal, para que serve  a gramática? Para impor uma quantidade de termos de difícil compreensão e reduzida eficácia para a maioria dos falantes da língua, ou para melhorar a competência linguística, para ensinar a reflectir sobre o seu funcionamento, para saber usá-la eficaz e adequadamente, para falar e escrever melhor, para compreender o que se lê?
Todos sabemos que o domínio da língua é a condição básica para a aquisição de qualquer conhecimento.
Insistir nisto é passar ao lado do que deveria ser o essencial na aprendizagem do Português  e pode mesmo, consequentemente, comprometer muitas outras aprendizagens. O fundamental tem que ser: ler, ler, ler; e escrever, escrever, escrever. A gramática deve ser "básica" e ensinada na medida em que possa ajudar a compreender melhor a língua para utilizá-la cada vez mais e melhor. Só isso!
Espanta-me que ninguém fale disto, que os professores obedeçam sem reclamar, que os pais não se queixem, que os responsáveis pelas políticas de educação não se preocupem, que se dê o facto como "consumado", que ninguém se manifeste também ruidosamente em relação a este sério e grave "crime contra a Língua Portuguesa", de que já falava Vasco Graça Moura num artigo publicado pelo DN em Janeiro de 2007, que ninguém grite a plenos pulmões que acabar com esta atrocidade é urgente, imperioso e inadiável. Para bem de todos nós!...

2 comentários:

  1. Subscrevo (quase) na íntegra a sua indignação. Primeiro saber ler, ler e compreender. Depois saber escrever, escrever e raciocionar. Saber interligar e estruturar. No final, podemos começar a falar da sistematização e terminologia linguística, mai-la essencial gramática, mas que todos se entendam e falem da mesma coisa... - Também existem interesses económicos por detrás das novas gramáticas, Isabel!

    Lá atrás disse que concordava com quase tudo. O "quase" refere-se às figuras de estilo e retórica. Adoro quiasmos e zeugmas (elipses) e sorvo logo pela manhã umas boas hipálages :) Todas estas e outras figuras enriquecem muito a língua e a retórica. Mais: estimulam a criatividade.

    beijinhos,
    paulo

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  2. Eu não sou contra a retórica, Paulo, de todo! Acho que toda a gente tem de saber o que é uma metáfora, um eufemismo e essas figuras mais comuns. As outras, há que saber utilizá-las adequadamente, mais do que decorar nomes e definições. Quantos dos alunos que acabaram o secundário o ano passado e há dois anos ainda saberão o que é uma sinédoque ou uma metonímia? Enfim, no fundo, acho que estamos de acordo...
    Um beijinho
    Isabel

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