segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Outono



Quando penso em Outono, vem-me inevitavelmente à memória Verlaine e a cadência lenta deste poema, que sei de cor, e que começa assim:
Les sanglots longs
Des violons
De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
Monotone...
Porque o Outono é todo ele devagar. Associo-o à palavra melancolia, que é um pesar com beleza por dentro, uma tristeza misturada com doçura, tudo só intimidade e lentidão. E gosto do regresso do frio a atravessar-nos a pele, das cores quentes e do cheiros próprios da época, do conforto das roupas macias e de quanto sabe bem ficar em casa em noites que começam cedo e parecem enormes.
O Outono sabe a recato e a recolhimento, a silêncios e a vozes baixas, a lanches no sofá e a quietude, depois da agitação e exuberância do Verão e antes da chegada ruidosa e excessiva das "Festas".
Por estes dias, com a mudança de hora ainda tão recente, sabem bem as bebidas quentes, o calor de um abraço bom e a vida um pouco mais virada para dentro, entre a comoção perante o encanto do que nos rodeia, o barulho da chuva nos vidros, e a subtileza do tempo que passa quase sem darmos por isso.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Caminhos


Por mais que confiasse na sua intuição e se deixasse levar pelo coração, havia na história da sua vida escolhas boas e más, surpresas e decepções, amores marcantes e outros que haviam passado sem fazer mossa ou deixar cicatriz. Havia as empatias imediatas, os interesses ou valores em comum e as afinidades de todo o tipo. Havia, também, talvez acima de tudo, o que se situa do lado do inexprimível e inexplicável, o que está para lá de todas as palavras e é só sentimento e emoção, que nos leva a aproximarmo-nos de umas pessoas e de outras não, a criar laços só porque sim, levados por um mistério qualquer que nos empolga, enternece e encanta, que faz o coração disparar no peito e depois se vai desenvolvendo devagar, na subtileza da partilha e da intimidade crescentes, até que o afecto se instale definitivamente, ou se perca para sempre.
Sempre fora de tudo ou nada. As meias tintas não eram para si. E por isso os amores fáceis e lineares nunca lhe aconteciam, nem a entusiasmavam. Eram as pessoas controversas e enigmáticas que a atraíam, como se houvesse naquela complexidade um mistério qualquer que fosse bom descobrir. Gostava de almas inquietas e errantes como a sua, da mistura de paixão e racionalidade, de risos fáceis mas não patetas, de sensibilidade sem lamechices. Gostava de mãos grandes, de abraços apertados e de palavras sussurrados ao ouvido em momentos de prazer e rendição. Gostava de se perder no fundo de outros olhos quando via neles a doçura que  converte os dias de estar juntos em dias inesquecíveis e bons.
Por isso não conseguia entender muito bem os que via preferir qualquer coisa morna ou mais ou menos satisfatória ao temor de se acharem a sós consigo mesmos, por mais que tentasse convencer-se que eram infinitas as possibilidades de encontrar o caminho certo, e que cada um escolhe o seu.
Aprendera a viver a vida sem amarras, sem pressa e sem medo, a entregar-se de alma e coração sempre que o amor chegava à sua vida, imponente e grandioso, animando-lhe o corpo na vertigem do desconhecido e no temor da novidade que se adivinhava na luz de novos olhares. Mas prezava a sua liberdade e precisava às vezes de silêncio e solidão para reencontrar o equilíbrio, pois acreditava e sentia que nessa alternância estava a sabedoria de viver de forma serena e feliz.
E, no entanto, ligava-se fortemente às pessoas e aos lugares, e parecia existir em aparente e constante contradição, entre a incerteza de ir escolhendo o rumo a seguir em quase total independência e a necessidade de voltar onde e a quem era sempre o seu porto seguro.
Diziam-na forte e arrojada quando no mais fundo de si se vira tantas vezes frágil e vulnerável, exposta e desprotegida, embora lhe soubesse bem poder ter um refúgio onde se acolher, deitar a cabeça e descansar, um colo a saber a casa e um corpo que conhecia de cor, sem necessitar de juras de amor eterno, de ciúmes parvos ou de sentimentos de posse, nem nunca precisar de assumir amores perante os olhos do mundo, que os compromissos e os afectos fazem-se dentro de portas e de corações, no secretismo de duas vontades que se conjugam.
Sabia que todas as pessoas, mesmo as que mais amamos ou admiramos, nos desiludem e magoam. E que algumas acabam por afastar-se a determinada altura sem uma razão óbvia, ou sem conseguirmos encontrar um motivo suficientemente válido que o possa explicar. Mesmo sem saber o como, o quando, nem o porquê de muitas coisas, acreditava que a vida se encarrega sozinha de fazer uma selecção natural e permitir que o bom permaneça e que o que não faz sentido ou não presta se vá perdendo no percurso.  E entre dúvidas e vontades, entre o que queria e não queria entender, ficava a certeza de que só estava no seu coração e  na sua vida quem tinha nela lugar cativo e de que, quando fechava uma porta, era para nunca mais a voltar a abrir.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Socorro, vem aí o Natal!...


Ainda faltam dois meses para as festas, mas na Avenida da Igreja reparo que já estão instaladas as decorações de rua. E essa constatação faz despertar em mim todos os sinais de alarme.
Lá vêm outra vez os sorrisos de plástico e as alegrias postiças, que se usam naqueles dias e se deitam fora imediatamente depois. E o trânsito infernal, o consumo desenfreado, a correria associada a uma festa que é agora muito mais de aparências, de excessos vários e de cansativas "obrigações" que de afecto genuíno, de paz e de tranquila simplicidade, como deveria ser.
É por isso que, ano após ano, tenho cada vez mais vontade de me ir embora nesta altura, ainda que seja um desejo difícil de concretizar por várias razões e, também, porque não há sítio nenhum onde não seja Natal. Era bom que o Natal pudesse readquirir a sua essência: a força de acreditar, a esperança de nunca nos sentirmos vencidos, a ternura de bem querer, a cumplicidade dos afectos que nos guiam e nos acompanham na vida. Porque os que são mesmo de verdade estão sempre connosco sem precisar de "dias festivos". E há lá coisa melhor que o aconchego de um longo e sentido abraço...

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Um artista português


Não sou uma incondicional do Fado. Mas acho, ainda assim, que qualquer português gosta de Fado, nem que seja só um bocadinho, porque há naquele canto simultaneamente triste e arrebatado qualquer coisa que tem a ver com a nossa essência e que só nós conseguimos entender em toda a sua dimensão.
Por isso, apesar de nunca ouvir fado em casa e haver apenas dois ou três nomes que verdadeiramente me tocam, no fim de semana estive num concerto de Fado.
Pela terceira vez na vida fui ouvir Camané. E, como das vezes anteriores, não me arrependi. Durante cerca de duas horas deixei-me seduzir pela sua voz quente e forte e fui levada por uma viagem dividida em duas partes sem paragem no meio, a primeira dedicada a Alfredo Marceneiro e a segunda percorrendo a obra em nome próprio, com brilhantes incursões pela poesia de Cesário Verde, Fernando Pessoa ou David Mourão-Ferreira, na qual pude sentir, como antes, a magia pura que consiste em entender de facto o que é a "alma portuguesa": é aquela mistura de melancolia, paixão, garra e entrega total à emoção do momento, tudo pontuado pelo magnífico som da guitarra portuguesa.
Impossível ficar indiferente à intensidade de quem se dá assim, inteiro, e se adentra também pelo mais fundo de nós ou pelo mais lindo, amargo, comovente, sério, delicioso da vida. De um espectáculo assim sai-se obrigatoriamente engrandecido, de alma a transbordar e convencido de que há, em Portugal, artistas excepcionais, como Camané e os músicos que o acompanham: José Manuel Neto na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença na viola, Paulo Paz no contrabaixo.
É por isso que mais do que no domínio do desporto, diante de uma selecção ou equipa futebolística qualquer, é em momentos assim, felizes e perturbadores ao mesmo tempo, que eu sinto orgulho de ser portuguesa.

Foste como quem me armasse uma emboscada
ao sentir-me desatento
dando aquilo em que me dei
foste como quem me urdisse uma cilada
vi-me com tão pouca coisa
depois do que tanto amei...

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Não, eu não sou CR7...


Quem me conhece sabe que eu não ligo muito ao desporto e em particular ao futebol, nem sequer quando joga a Selecção Nacional, porque não é assim que se manifesta o meu patriotismo. O que se passa nestes meios é-me portanto quase totalmente indiferente, a não ser naquele fundo de mim  que gosta de estar mais ou menos a par da actualidade.
Não tenho, por isso, nenhum orgulho especial em Cristiano Ronaldo, não porque não lhe reconheça competência e qualidades, mas porque há noutros domínios muitos portugueses que também se destacam em níveis idênticos sem que com isso se faça o mesmo alarde, apenas pelo facto de o mediatismo das matérias ser distinto.
Mas até percebo que se possa ver em Cristiano Ronaldo um desportista de excepção. O que já não entendo é que se misture tudo: uma coisa é o que ele é enquanto futebolista e outra coisa muito diferente é o que a pessoa faz e é na sua vida privada. E portanto não entendo este movimento um pouco irracional e  até absurdo que se está  a gerar à volta das últimas notícias que lhe dizem respeito e que assume contornos que chegam a ser ridículos.
Eu não tomo partido por nenhum dos lados, porque na realidade o que se passou só os intervenientes directos da história poderão saber com rigor. Mas que o caso tem contornos complicados é algo que não se pode negar. Basta ler na íntegra o artigo do Der Spiegel para o perceber.
O que me faz confusão no meio disto tudo é que pessoas que eu considero inteligentes, por quem tenho estima e consideração, reajam também apaixonadamente e sem qualquer objectividade. Como se Cristiano Ronaldo, por ser "bola de ouro" e mais não sei o quê, estivesse acima de toda a suspeita e não fosse uma pessoa como outra qualquer, sujeita à mesmas leis e aos mesmos princípios.
Estranho muito que as vozes que agora se levantam para defender Cristiano Ronaldo sejam, em muitos casos, as mesmas que defendem os movimentos #metoo. "É estranho que a senhora venha voltar ao caso tantos anos depois", dizem. "Só pode ser uma oportunista". É estranho, suspeito, até, de igual modo, digo eu, que Cristiano Ronaldo tenha querido com o seu dinheiro "silenciar" o caso. Porque se se tratasse de mera calúnia bastaria negar os factos. Depois, todos os argumentos utilizados me parecem lamentáveis e primários; são os que vão de demonstrar que ele até é um benemérito capaz de "ajudar muitos pobrezinhos e necessitados" até ao machismo mais puro que considera tratar-se apenas de uma p... ou dizer que "se ela aceitou ir para a suite, já sabia ao que ia"... Porque forçar alguém a fazer alguma coisa que não queira é sempre uma forma de violência. Aqui e na China... E seja o alvo quem for...
Enfim, eu não defendo nem acuso, mas "não ponho as mãos no lume" por ninguém. Nem por mim...
É por tudo isto que coisas como "somos todos CR7",  ou "vamos mostrar ao mundo que somos portugueses e estamos ao lado de CR7 contra as mulheres oportunistas. Ele defende a nossa nação, vamos apoiá-lo com o coração" ou  ainda a "corrente" proposta pela própria família que consiste em pôr no perfil do FB uma fotografia de CR com uma camisola de Superman e os hastags #ronaldoestamoscontigoatéaofim#justiçaCR7, #elemereceonossoapoio, #deusnuncafalha e #deusnocomando, a mim só me dão vontade de rir.
E, já agora: deixem Deus fora disto...

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Passear por Lisboa



É uma hábito de há muito: de vez em quando gosto de seguir à deriva pelas ruas da minha cidade, olhando-a como se a visse pela primeira vez. Encontro sempre nestes passeios um pormenor qualquer que nunca vira antes, uma luz diferente, uma mudança, um sítio novo. São momentos de encontro comigo e com os meus lugares, de pacificação e sossego interior, de refúgio e de silêncio, de deixar que apenas os olhos tomem conta de tudo, em contemplativa rendição, entre o espanto e o aconchego, sem lugar a muitos pensamentos.
Com o tempo, Lisboa modificou-se, modernizou-se e ficou na moda. Passear por onde antes havia pouco mais que solidão e quietude é agora uma bizarra aventura para a qual há que estar preparado. Porque a cidade já não é a mesma: continua magnífica de esplendor, graça e luz, mas tornou-se em certas zonas insuportavelmente movimentada e barulhenta. Misturo-me com as hordas de turistas que a invadem  nos lugares e horas mais impróprios e confesso que às vezes me diverte que me julguem italiana ou espanhola, ou que gente que conhece Lisboa certamente bem menos e pior que eu se ponha a dar-me lições que eu não peço com os seus This is Alfama... e outras considerações do género.
Mas se é verdade que já não posso sentar-me tranquila junto ao Cais das Colunas ou no Miradouro da Senhora do Monte, que se quero tomar grandes ou pequenas resoluções, pensar e decidir, ou simplesmente sonhar e deleitar-me com a brisa da tarde nos cabelos ou o sol a arder-me no corpo tenho que procurar como e por onde fugir à multidão, também é verdade que conheço esta cidade como me conheço a mim, que ela continua a  ser este lugar com uma aura especial, que me pertence e onde eu também pertenço e me sinto feliz.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Aznavour: mourir d'aimer


Juntamente com Brel, Brassens, Moustaki, Ferrat, Reggiani, ou Ferré, Charles Aznavour faz parte daquele grupo de cantores / poetas que me fez conhecer melhor e amar mais a língua e a cultura francesas, em canções que me acompanharam em todos os momentos da vida, embalaram os meus primeiros amores e as lágrimas de desilusão, alimentaram sonhos insensatos, projectos de felicidade, utopias e desgostos. Que ainda hoje ouço muitas vezes, não por saudosismo, mas porque me parecem intemporais; e porque encontro nelas, naquela mistura perfeita de texto e música, a doce melancolia que sempre me encantou.
Deste grupo, já não sobra ninguém. Mas permanecem as canções.  Aznavour foi talvez o menos rebelde de todos eles, o mais certinho e romântico, e não está entre os meus preferidos, mas não deixa de ser um ícone, um nome incontornável da "chanson française" e, acima de tudo um resistente que, por ironia do destino, nos deixa de forma súbita no Dia Mundial da Música, aos 94 anos e ainda em plena actividade. Em boa hora decidi ir ouvi-lo há dois anos, no seu último concerto em Lisboa. E impressionou-me a inesgotável energia e capacidade de fazer um concerto tão emocionante aos 92 anos, como se fosse uma pessoa que estivesse para lá do tempo, ou para quem ele não tivesse qualquer significado.
Cantando o amor, a raiva, a ironia ou a revolta, são verdadeiros poetas que usaram a palavra com mestria, no seu imenso potencial de significado. É por isso  impossível gostar de música francesa sem entender muito bem o significado de cada texto, de cada palavra, na sua sonoridade própria, que faz com que qualquer tradução a limite ou diminua, e que só em versão original ela ganhe toda a força e plenitude.

Je vous parle d'un temps
que les moins de vingt ans
Ne peuvent pas connaître
Montmartre en ce temps-là
Accrochait des lilas
Jusque sous nos fenêtres...