segunda-feira, 30 de junho de 2014

Parar


Estar. Ver. Abrir-me ao deslumbramento do mistério, da verdade oculta das coisas. E isso não passa pelas palavras.
(Vergílio Ferreira, Pensar)

Neste último dia de férias, com sabor a despedida e a recomeço, escolho a tranquilidade quieta da casa e viro-me um pouco para dentro para pensar. Talvez por isso, gostei tanto deste texto, que tem muito a ver com o meu estado de espírito do momento.

Vivemos num tempo fragmentado, que convida à dispersão. E somos vítimas crescentes dessa fragmentação. A nossa capacidade de concentração é cada vez mais escassa. Paramos a série televisiva a meio para ver não importa o quê, tornámo-nos incapazes de assistir a um filme de duas horas sem interrupções, espreitamos a todo o momento o ecrã do telemóvel em busca de novas mensagens mesmo sem esperarmos mensagem alguma, as redes sociais solicitam-nos adesões ou indignações contínuas, os dias vão-se dissolvendo em 24 horas de espuma. Este estúpido frenesim em que mergulhámos graças aos avanços tecnológicos impede-nos quase sempre de pensar. E afinal era nisto que devíamos investir muito mais do nosso tempo: pensar.
(Pedro Correia, no blogue "Delito de Opinião")
 É que, com frequência, esquecemos o essencial. E parar também é importante. Hoje, é isto: preciso de silêncio e de sossego, de um tempo para olhar para mim... Depois, são nove semanas até voltar a mudar de vida.
(Fotografia de Paulo Abreu e Lima)

domingo, 29 de junho de 2014

Uma má escolha

 
Eu, que embirro solenemente com aquele ar de "pãozinho sem sal" de Juliette Binoche, devia ter suspeitado. Mas enfim, também sei que o meu lado mais romântico às vezes me prega algumas partidas e, sabe-se lá porquê, fui achar que um filme chamado "Por falar em amor" podia ser interessante. Até porque o título original (Words and pictures), muito mais de acordo com aquilo de que se trata, também tinha algo que me cativava. A questão das palavras, que me diz tanto, a mim que sou toda das literaturas...
E depois havia ainda Clive Owen e o seu charme. Motivos mais que suficientes para achar que podia "esquecer" a Binoche e as carinhas de quem está sempre a precisar de levar com um pano encharcado, e ir ver o filme.
Decisão errada. O filme é de um australiano de que confesso que nunca tinha ouvido falar, Fred Schepisi, e, apesar de partir de uma ideia interessante - a de pôr em confronto a importância das palavras e a das imagens e também, de certo modo, o impacto que a arte pode ter na nossa vida -, é um sem fim de lugares-comuns e uma tremenda maçada, onde não falta o cliché do artista falhado, alcoólico e cheio de problemas pessoais, a desgraçadinha que tem uma doença incapacitante, e a historinha de amor cor de rosa e com final feliz, depois de uma passagem pelos AA e uma operação que deixa a outra menos coxa e mais livre para amar e ser feliz para sempre.
Na verdade, para a piroseira ser completa, só faltaram os passarinhos a cantar e uns corações à mistura. Mas esteve quase lá... Ora eu, que já  não ia ao cinema há algum tempo, e sai-me logo uma xaropada destas!...
Aqui está, pois, um filme que desaconselho vivamente, mesmo sabendo que há dias assim, em que nem tudo corre muito bem...

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Língua Portuguesa


(...) Em que ortografia vão os nossos grandes autores ser servidos nas escolas? Serão implacavelmente desfigurados pela aplicação dessa coisa sem nome? Ou virá o Governo a tomar providências rápidas para, pelo menos em parte, remediar a situação?
A crítica definitiva do Acordo Ortográfico, nos planos científico, jurídico, político e sociocultural, está feita há muito, pelo que nem sequer vale a pena retomá-la. Mas torna-se necessária uma solução que, de resto, (...) sairá tanto mais cara ao País quanto mais tarde ela for tomada. Ao custos directos e indirectos serão muito altos mas arriscam-se a tornar-se astronómicos se se continuar a perder tempo. Trata-se de uma questão também política que, pela sua dimensão internacional, requer um particular tacto no seu tratamento e cuja solução, segundo creio, poderia ser encontrada em três planos.
Em primeiro lugar, o Governo poderia negociar com os editores de livro escolar, que não são assim tantos, o abandono do esquema actual de aplicação do Acordo nas edições escolares, tendo em conta o tempo de validade dos livros e manuais existentes e o seu ritmo de substituição.
Entretanto, o Governo suspenderia a aplicação do Acordo Ortográfico decretada por uma Resolução do Conselho de Ministros de ultrajante memória, determinando que, na medida do possível, se voltasse já ao sistema anterior (afinal, o ainda vigente, quer se queira quer não...)
Em terceiro lugar, no plano internacional, seriam desencadeadas as medidas necessárias a uma revisão imediata do Acordo Ortográfico pelos oito países de língua portuguesa (incluindo portanto Timor).
Estas três dimensões do problema não terão nunca uma solução satisfatória, atendendo aos malefícios já provocados e aos que se desenham no horizonte. Mas na situação em que nos encontramos, não se pode esperar que haja muitas outras saídas possíveis e esta seria certamente uma delas. (...)

Relembro, aqui e agora, esta crónica de Vasco Graça Moura, publicada no DN a 22 de Janeiro de 2014, por ter ficado a saber, pela comunicação social, que se comemoram hoje oficialmente 800 anos da língua portuguesa, com base no testamento de D. Afonso II, que dizem ser o primeiro documento conhecido escrito em português.
Não posso deixar de achar piada a estas efemérides e aos discursos laudatórios que aparecem sempre em ocasiões assim, segundo os quais  a nossa língua é uma das mais importantes do mundo e blablabla, quando na verdade a vejo estropiada diariamente por essa aberração do AO, que se vai aplicando assim assim, como é típico de tudo o que se passa por cá, e quando falta a coragem política para acabar com esta monstruosidade que aos poucos vai minando e desfigurando a nossa língua, igorando que a língua é viva mas é também diversa, e não se muda por decreto; e esquecendo que é a língua que nos define e estrutura o pensamento e permite a nossa relação com o mundo e que, por isso, deve ser cuidada todos os dias e não apenas lembrada de vez em quando, em datas específicas, assinaláveis no calendário.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Os estragos do tempo...



Agora, muitas vezes, quando a olho e vejo nela uma sombra do que já foi, penso em quantas histórias encerram estes 89 anos, dos quais conheço tão bem as fortalezas e as fragilidades. E lembro-me, inevitavelmente, de Jacques Brel e das palavras tão certeiras de Les Vieux, sobre os estragos do tempo e um mundo que, com o passar dos anos, se vai tornando cada vez mais curto e limitado.
(...)
Les vieux ne bougent plus,
leurs gestes ont trop de rides
leur monde est trop petit
du lit à la fenêtre,
puis du lit au fauteuil
et puis du lit au lit...
ou
Les vieux ne parlent plus
ou alors seulement
parfois du bout des yeux...
ou ainda
On vit tous en province
quand on vit trop longtemps...

Há momentos em que a sua inconfundível gargalhada, a transparência verde do seu olhar, ou a alegria genuína que sempre a caracterizou, me trazem de volta pequenos pedaços de um passado que já não existe. Mas é no toque da pele, quando aperto a sua mão na minha, que sinto, na verdade, que só o nosso amor não muda.


quarta-feira, 25 de junho de 2014

Acasos


 
Destino ou casualidade, há quem chegue à nossa vida de forma imprevista, e a modifique, e se vá deixando ficar a ocupar um espaço grande no coração, que é amizade, é amor, é afecto desmedido, e se leva pela vida fora no claro escuro dos dias e das noites, bom e mau, tudo e nada, sem querer saber do que é, do como vai ser, ou do que vem depois...

terça-feira, 24 de junho de 2014

Não se aguenta!...

 
Tenho cada vez menos paciência para me sentar a ver televisão. Houve um tempo, há muitos anos, em que gostava de ver novelas brasileiras; mas agora já não. Também não vejo séries, nem concursos - os de cantorias, por exemplo, não se aguentam e são todos iguais - e filmes só mesmo no cinema.
Depois, não há na televisão portuguesa verdadeiros debates de ideias e de opiniões. Há apenas os "comentadores de serviço", que opinam sobre política ou futebol, aqueles a que Pinto da Costa um dia sarcasticamente se referiu como "paineleiros", sempre os mesmos, desinteressantes e cansativos. E os infindáveis programas, debates, comentários, desportivos. Horas a fio. Em todos os canais ao mesmo tempo, em certos dias.
Sobra a informação. Mas nem isso vale a pena. Os telejornais começam invariavelmente com as lesões de Cristiano Ronaldo, ou outra notícia assim "importante", passam pela crise e arrastam-se penosamente por mais de uma hora, com os mais impensáveis fait-divers e muitas ligações em directo, por tudo e por nada, para tratar de coisa nenhuma.
A este respeito, encontrei uma vez mais no Delito de Opinião um texto de Pedro Correia, claríssimo e muito bem escrito, com o qual concordo em absoluto.
Diz assim:
Hoje, com a febre dos "directos", qualquer irrelevância se torna manchete. Um dos problemas do nosso tempo é a falta de hierarquia nas notícias. Tudo vale, desde que preencha tempo de antena ou provoque reacções em cadeia nas redes sociais - com prazo de validade cada vez mais curto. A morte de mil pessoas num atentado surge nos telediários imediatamente antes ou imediatamente após uma peripécia da treta protagonizada por qualquer futebolista ou vedeta de telenovela. Há quem faça vénias ao fenómeno, em nome da suposta "democratização" da informação. Mas informação não é isto. E não existe democracia digna desse nome sem informação séria, credível, editada e hierarquizada. Tudo quanto a moda dos "directos" não é.
Enfim, o que tudo isto tem de bom é que me vai sobrando mais tempo para dedicar à leitura. Menos mal...

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Arrebatamento...



 




 

 



 
 
 
 

...como eu não sei rezar,
só queria mostrar
meu olhar, meu olhar, meu olhar...

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Paris, je reviens...

 
Gosto de cidades. Gosto de conhecer cidades novas, mas gosto mais ainda de voltar, vezes sem conta, às "minhas" cidades.
Paris é o meu amor maior, de hoje e de sempre, uma daquelas paixões idealizada primeiro e concretizada depois, sempre aconchegante e surpreendente, a minha cidade do coração, que ocupa um lugar enorme na minha vida. 
É sempre o primeiro destino onde me apetece voltar,  e  suspiro de saudades quando estou muito tempo longe. Um ano basta. Mais que isso parece-me uma eternidade.
Porque sinto a falta da luz do entardecer no Luxembourg, da vista de Montmartre, dos passeios no Quartier Latin, de me sentar na Place des Vosges; e dos telhados e do rio, dos cafés e das praças, do ritmo próprio da cidade, que mistura, com requinte e sabedoria, arte e cultura, boémia e sossego, raffinement e charme. E da língua, essa a língua que é para mim a mais bonita do mundo, que não me canso de ouvir, que adoro falar.
Paris tem em si uma inexplicável aura de magia e de encanto, que faz dela um sítio verdadeiramente especial, que convida ao amor, ao bem-estar e ao sonho. Por agora, é tempo de voltar a perder-me nos seus braços. Tempo de felicidade...

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Eu é mais bolos!...




Durante não sei quantos dias, querendo ou não, vamos ter de aguentar uma overdose futebolística. E não são só os jogos, na televisão ou em écran gigante, um pouco por todo o lado. São os intermináveis comentários que antecedem e sucedem cada desafio, as tácticas e estratégias discutidas até à exaustão por verdadeiros "treinadores de sofá"; e ainda todas as notícias sobre as lesões, os treinos, o que comeram, vestiram, disseram, ou onde dormiram os jogadores; as bandeirinhas e os cachecóis; e um súbito furor patriótico, que inunda tudo. Um cansaço!...
Tudo isto me passa ao lado, tanto quanto é possível, no meio desta espécie de terramoto, que parece querer fazer esquecer que há vida para além do futebol.
Hoje, por exemplo, neste que é dia de Lisboa, nasceu em 1888, por uma feliz coincidência, um dos seus poetas maiores.  E isso também vale a pena ser lembrado...
Aqui fica:
Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
                        (Fernando Pessoa)        

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Noite de Festa

 
http://www.youtube.com/watch?v=xNFGMjyISGA

Bairro novo, bairro velho, gente boa
Em casa não há quem fique!
Vai na marcha todo o povo de Lisboa,
Da Graça a Campo d´Ourique!


Esta noite, Lisboa não dorme. Veste-se de cores garridas e canta e dança até ser dia, entre sardinhas assadas, manjericos e algazarra.
Lisboa é assim mesmo: menina e mulher, surpreendente e caprichosa, romântica, reinadia e inquieta. Feminina da cabeça aos pés.
Hoje, que é o dia da sua festa maior, assume o seu ar mais bairrista e boémio, faz-se varina e fadista, e explode numa contagiante alegria, um arraial em cada esquina, vigiada de perto pelo Tejo, seu eterno amante, que a olha em embevecido e enamorado sossego.
E até eu, que não gosto de euforias obrigatórias, que dispenso os festejos de Passagem de Ano, e os do Carnaval mais ainda, não posso, nem quero, ficar em casa. Porque hoje  a noite é especial e imperdível, sobretudo para os que, como eu, gostam de Lisboa e se orgulham de pertencer-lhe, e vivem em estado permanente paixão por esta cidade única, deslumbrante e de inigualável encanto.

(Fotografia de Paulo Abreu e Lima)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Tardes com sabor a Verão

 
Depois de Março, Junho é o mês de que eu mais gosto. É o mês das cerejas e das festas de Lisboa, das tardes que se prolongam noite dentro, da brisa cálida que faz apetecer a rua, antecipando o Verão que não tarda em chegar. 
Este ano, por razões muito pessoais, aproveito ainda mais demorada e profundamente os prazeres de um mês tão especial. E delicio-me em tardes langorosas passadas em frente ao mar, ou a olhar o colorido das árvores que enchem ruas e praças com tons de rosa e lilás. Demoro-me nos fins de tarde, espantada e surpreendida com a luz inebriante  do rio a brilhar, regalo-me com o sabor da fruta fresca, divirto-me com a algazarra dos arraiais a contrastar com noites quentes, românticas e quietas, de olhos perdidos na lua, sonhando amores ardentes e beijos apaixonados, de antes de agora e de depois.
 Em dias preguiçosos assim, nada melhor do que soltar o cabelo no vento e deixar a vida correr despreocupada, sem mais ambição do que a de ser feliz a cada segundo.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Voltar à vida real




O  melhor do Rocío é o que não se pode contar: são os risos e as emoções à solta, os olhares cúmplices e os abraços apertados,  os corações subitamente mais perto uns dos outros. É o sentido da festa,  as memórias de outras vezes e de outras pessoas, e o que só sabe quem por lá passou.
Depois de três dias naquele lugar especial que é como um mundo à parte, diferente de tudo, longe das crises, da política e das conversas de todos os dias, é tempo de regresso.
Volta-se sempre diferente, revigorado, com os olhos a brilhar e o coração cheio, com muitas recordações que se guardam para sempre, e mil e uma histórias para juntar às lembranças  de tantas outras romarias já vividas.
Agora, arrumam-se os fatos nos armários, limpa-se o pó das botas, guardam-se as flores as medalhas enquanto se sonha já  com o próximo ano, ou com outro ano, quando num outro Rocío tudo volte a ser o mesmo e completamente diferente, quando se possa de novo voltar a cantarle a la Virgen con fe, con un olé!...
Mas por agora venham as sardinhas e os manjericos, que está aí o Santo António ...Porque esta é a semana de Lisboa, de outras festas e outras realidades...

sexta-feira, 6 de junho de 2014

25 dias só meus

 
Sem despertadores a tocar às seis ou às sete da manhã, viver segundo a vontade de cada instante, passear na cidade, apanhar sol, escolher com quem, onde e quando estar, ficar em casa, dormir, ler, descansar, conversar, viajar, sentir-me dona do meu tempo. Tudo tão bom!...

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Alma(s)

 
Como num conto de encantar, como o deslumbramento diante da visão do que se encontra depois da curva da estrada, também às vezes na complexidade da vida surge o inesperado mistério das almas que se tocam, em imperceptível e extraordinário magnetismo, que é esplendor e é fascínio, e nos devolve serenidade e equilíbrio, e quase faz acreditar na perfeição.

 (Fotografia de Paulo Abreu e Lima)

terça-feira, 3 de junho de 2014

Preparar o Rocío

 
Os dias que antecedem o Rocío vivem-se no desassossego dos preparativos, que são já parte da festa.
Retiram-se dos armários os vestidos compridos, que voltam a experimentar-se, na ânsia de ver se precisam de ser apertados ou alargados consoante os anos nos foram retirando ou acrescentando centímetros em zonas críticas. Ou para adaptá-los à moda do momento, com mais ou menos folhos, curvas marcadas, tecidos lisos, ou com os tradicionais lunares, no alegre colorido que antecipa os festejos e que logo evoca Espanha, cor, sol, luz, palmas e olés. E música, muita música...
Escolhem-se criteriosamente as roupas para cada dia, o vestido para a noite de Sábado, ou o fato para assistir à saída da Virgem; combinam-se cores e adereços, e nada, mesmo nada, é deixado ao acaso: a medalha de romero que se exibe no peito com indisfarçável orgulho rociero; os penteados previamente ensaiados, cabelo solto ou apanhado, a flor no alto da cabeça ou de lado, mesmo por trás da orelha direita, mais a peineta para compor e aprimorar a toilette; e os brincos, que são também obrigatórios. Grandes, para aquele ar mais gitano, reconhecível ao primeiro olhar. E depois ainda as botas, claro, que ajudam a caminhar na areia.
Voltam a ouvir-se as sevillanas rocieras, relembram-se os passos entretanto adormecidos num canto da memória, e quer-se adiantar o calendário para que tudo aquilo que sabemos tão especial possa ser realidade mais depressa.
Acertam-se os últimos detalhes até que vem finalmente o dia em que se ruma para sul e emocionado se chega por fim à aldeia, onde durante dois ou três dias se vive alheado do mundo, naquele universo que só compreende quem o conhece e o sente na pele e no fundo da alma, ao entoar a salve rociera num coro que arrepia, ou entre sevilhanas misturadas com o toque dos sinos e os foguetes, vivas à Blanca Paloma, reina de las marismas, a flauta e o tamboril, a frescura do sabor do rebujito, o trote dos cavalos e o chiar das carroças, em incessante corrupio, de dia e de noite, pelos caminhos de pó.
Há uma parte considerável do prazer da festa que se vive na sua preparação, na excitação do que se espera e na antecipação do que está mesmo a chegar.
Mas é ali, naquele lugar que parece encantado, na quietude da marisma, em silêncio diante da Virgem, ou no tumulto alvoroçado e aparatoso da Romaria, entre risos, lágrimas incontidas e emoções à flor da pele, em genuína celebração da fé, que o nosso lado mais interior e emocional se fortalece e a vida ganha mais plenitude e mais sentido.
 

domingo, 1 de junho de 2014

Maternidade

 
Ser mãe, já se sabe, é a mais avassaladora experiência do amor total. Mesmo não o conhecendo na pele, ninguém duvida de como pode ser único, inigualável e profundo esse elo infinito e esse sentimento impar, feito de generosidade e despojamento, de inesgotável afecto e de colo enorme, de sorrisos e de lágrimas, de entendimentos e cumplicidades várias, de amparo e de aconchego, pilar, âncora e porto de abrigo, que se vai invertendo ao longo do tempo, por força da lei da vida.
E, no entanto, mesmo no século XXI, há ainda, de uma forma muito mais generalizada do que possa pensar-se, uma mentalidade retrógrada, provinciana até, que tende a ver  em cada mulher sem filhos uma pessoa excessivamente insensível ou egoísta e, no limite, um ser digno de pena. Porque lhe passa ao lado uma dimensão muito significativa da existência. Como se fosse uma obrigação moral e o seu incumprimento constituísse quase um sacrilégio.
Enfim, quando o que o motiva são razões médicas fundadas numa qualquer impossibilidade física ainda se tolera, com um olhar subitamente apiedado. Caso contrário considera-se, até de uma forma mais ou menos inconsciente, que se trata de um "bicho raro", e suspeita-se de imediato haver ali um "problema".
Pode invejar-se-lhe secretamente a liberdade e o tempo disponível, a possibilidade de chegar a casa e de se estender no sofá, em vez dos banhos, dos trabalhos de casa e da lancheira do dia seguinte. Mas como entender que não lhe interessem as conversas sobre cocós e pediatras, noites mal dormidas, antibióticos eficazes, ou infantários sobrelotados? E depois, lá no fundo, o inevitável suspiro de alívio: "Ah, ela nunca compreenderá como é maravilhoso tudo isto", exteriorizado às vezes  na frase habitual, lançada com a brutalidade agressiva de quem desfere um punhal: "tu não percebes, porque não tens filhos!.."
Esquecendo, porém, que ser mãe pode ser (e é-o em muitos casos) uma decisão profundamente egocêntrica e não raras vezes interesseira; ou que quem apenas é filha, seja por opção, porque "foi Deus" que quis assim,  ou pelas mais diversas circunstâncias e razões, pode também viver rodeada de crianças, sem que isso signifique menos amor, ou sentimento, ou emoção. E que possa não se sentir menos mulher por isso. E ser muito feliz na mesma.