segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Amor às letras

 
Já falei dela aqui, mas na verdade nunca conseguirei dizer na totalidade o muito que lhe devo. Antes como agora. Ela é tão importante na minha vida como a professora que me ensinou a ler e a escrever. No fundo, ambas mudaram a minha vida; ambas fazem, de certo modo, parte da família. Da família afectiva, claro está.
Maria Alzira Seixo mudou a minha forma de ver o mundo, ensinou-me a aprofundar a paixão das letras que trago comigo desde sempre e a perceber  como a literatura pode ser determinante na forma como lemos, como escrevemos, como pensamos e até como vivemos. As suas aulas foram por isso as melhores da minha vida. Inesquecíveis até hoje. Por tudo o que sabe e ensina, mas sobretudo pelo modo simultaneamente simples e arrebatado como fala, como lê, - tão expressivamente, que conseguimos ao ouvi-la visualizar a mancha gráfica do texto -, por tudo o que nos faz pensar.
É talvez por isso que passados muitos anos ainda consigo lembrar a forma apaixonada como nos falava de Roland Barthes, de quem fora aluna, ainda sou capaz de a ouvir repetir o incipit da Princesse de Clèves:
La magnificence et la galenterie n'ont jamais paru en France avec tant d'éclat que dans les dernières années du règne de Henri second, ou recitar, emocionada, o poema barroco de Du Perron: 
Au bord tristement des eaux je me retire 
et vois couler ensemble et les eaux et mes jours
je m'y vois sec et pâle et si j'aime toujours
leur rêveuse mollesse où ma peine se mire.
E tudo isso foi essencial, também, para a minha forma de ser professora. Ensinou-me a deixar-me enfeitiçar pelas palavras. E a perceber porquê. Ainda anteontem a ouvia dizer esta coisa extraordinária: A literatura é um trabalho de prosódia. É dizer alguma coisa, mas com um determinado ritmo e uma determinada sonoridade. E é isso que faz a diferença e que nos enfeitiça. Quem estuda literatura continua enfeitiçado; mas sabe porquê.
Agora estou de novo a fazer um curso com ela, que tem este belíssimo nome: "mãos que constroem sonhos". É sobre Mário Dionísio e o neo-realismo, mas como tudo aquilo de que fala é sobretudo sobre a literatura, a arte, a vida. Fala-se de tudo. De Proust. De pintura. De ler e de escrever. E de ensinar, também. E tem sido mais uma fascinante descoberta, que me deixa encantada.
Acabei há instantes de ler a interessantíssima autobiografia de Mário Dionísio, mais ao jeito de memórias, e com passagens como esta:
(...) uma nação secularmente mergulhada na mais completa ignorância das suas próprias carências (que não são só pão e casa, e mesmo para ter o pão, para ter a casa) exigia, antes de tudo, sabem o quê?, ensino. Ensino, no sentido mais vasto e profundo da palavra. Tão vasto e tão profundo que a tarefa imensa de pôr milhões a saber ler e escrever (mas que é ler?, mas que é escrever?) mais não seria do que um ponto de partida. Em todas as idades. Em todos os recantos desta terra de milagres, crenças e crendices, de faz como vires fazer. Ensino para que se aprenda a ver com os próprios olhos, a intervir com as próprias mãos (...)
Não podia ser mais actual!...
E, como se tudo isso fosse pouco, Maria Alzira Seixo tem ainda uma frontalidade genuína, que eu tanto aprecio, nela como em toda a gente (sobre isso diz "quem nos quer bem diz-nos onde estamos mal. Porque o "educadinho" é uma hipocrisia, uma dissimulação") mas que não a impede de ser uma pessoa muito doce, que revela ter um grande coração, nem que seja pela generosidade de partilhar com o mundo tanto do muito que sabe. Ouvi-la é pois, sem dúvida, um monumental e indescritível privilégio, que deixa marcas para sempre.

2 comentários:

  1. É-me difícil perceber que há muita gente que não tem amor às letras.

    A literatura enfeitiça, sim.

    Belo tema, Isabel.
    Beijinho

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    1. A mim é-me mais difícil ainda perceber que haja hoje um grande número de pessoas que acha que "escreve", mas que não lê, ou lê pouco, ou lê mal, argumentando que não tem tempo para ler, ou outras barbaridades. Como se uma coisa pudesse existir sem a outra. Como se para escrever não fosse preciso ler muito, antes...
      Enfeitiça, sim; e é um feitiço inesgotável.
      Beijinho

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