segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O esforço e o dom


Encontrei o texto por acaso nas redes sociais. Tem um título que pode à partida parecer um pouco impiedoso, quase cruel: "Meu filho, você não merece nada". Foi escrito por Eliane Brum, uma brasileira, jornalista e escritora, que colabora também no El País. E dá que pensar. 
Apesar de só agora ter tido dele conhecimento, foi escrito em 2011. No entanto, nem por isso perdeu actualidade e constitui um interessante e muito realista retrato das novas gerações e do modo como são educadas, isto é: mais ou menos preparadas  do ponto de vista das habilidades e das tecnologias, mas incapazes de lidar com a frustração, o risco, o esforço e a ideia de "criar a partir da dor", a inércia cada vez maior em "fazer-se à vida", uma visão do mundo baseada no princípio de que têm todos os direitos e nenhuns deveres, o que explica, entre muitas outras coisas, o drama que são hoje os "trabalhos de casa", por exemplo, a proliferação de "centros de explicações" e todas as consequências nefastas que daí advêm, a permanência na casa dos pais até perto dos trinta ou para além disso, a emigração vista como uma fatalidade, a má educação e a falta de civismo crescentes, que quem como eu  lida com tudo isto diariamente tão bem conhece.
Aqui ficam apenas alguns excertos. Para quem quiser ler o texto inteiro, também pode fazê-lo aqui:

"Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. (...) Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos - bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
(...)
Tenho-me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas, onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece - porque obviamente não acontece - sentem-se traídos, revoltam-se com a "injustiça" e boa parte (...) desiste.
(...) foram crianças e jovens que ganharam tudo sem ter de lutar por quase nada de relevante, que desconhecem que a vida é construção. (...)
A nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam "felizes". Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos (...) sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinónimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites  da sua condição humana tanto como com os das suas capacidades individuais?
Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está está no dom, naquilo que já nasce pronto. (...) Ter de dar duro para conquistar alguma coisa parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. (...)
Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia, uma espécie de traição ao futuro que devia estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez esteja aí uma pista para compreender a geração do "eu mereço".
Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto  e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais lhes tinham prometido. (...) possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer. (...)
Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem - e aos pais caberia garantir esse direito - que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade - e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar - e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele. (...)
Assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem (...) se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza  de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem  que tão importante como uma boa escola, um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: "Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua". (...)
Crescer é compreender que o facto de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado, porque um dia ela acaba.

2 comentários:

  1. Normalmente desconfio dos textos do género: "esta geração está perdida, antigamente é que era bom..."
    Até porque depois vamos a ver os autores do texto e aquilo que descobrimos é que são de uma forma ou de outra o contrário daquilo que apregoam. Mas calma aí... Se os filhos dos outros fazem birra é porque os pais não lhes deram educação, mas se o meu faz... Bem, na realidade não é bem uma birra: foi um espirro... Para além disso é uma trata-se de uma criança muito especial que não pode ser comparada com as outras...
    Claro... claro... Especial de corrida...

    Curiosamente eu até acho que o contrário: pertenço à geração dos "direitos adquiridos" que vai deixar um país em cacos à geração seguinte. Se formos a ver bem, a atual geração de "jovens" vai ser a primeira em várias decadas que vai viver pior que a imediatamente anterior: com menos direitos, menos oportunidades, etc.

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    1. Sérgio, vai-me desculpar, mas parece.me que não percebeu o que o texto e o post querem dizer. Não se trata de todo de "esta geração está perdida, antigamente é que era bom", nem de "os filhos dos outros" versus "os nossos filhos".

      Trata-se de uma constatação sobre a geração do "eu mereço" que pretende alcançar tudo apenas por existir e sem o mínimo esforço para lá chegar. E isso é fruto do modo como são educados.

      Sei muito bem do que falo. E não me venha com a conversa do "país em cacos para a geração seguinte." Todas as gerações tiveram dificuldades e tiveram de fazer-se à vida de uma ou de outra maneira. O país está "em cacos", mas já esteve pior, como o mundo também vai mudando..
      Conheço muitos meninos e meninas de vinte e poucos anos que estão em casa à espera que lhes apareça um emprego (aquele com que sonham) ou que vão para o estrangeiro e se sujeitam a condições que aqui nunca aceitariam, tal como também conheço os que mesmo tendo acabado os cursos há pouco tempo, sempre trabalharam porque foram suficientemente empreendedores para o fazer. E é isto...

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