domingo, 24 de maio de 2020

A palavra exacta


Elas olham para o espelho muito tempo. Elas choram. Elas suspiram por um rapaz aloirado, por duas travessas para o cabelo cravejadas de pedrinhas, um anel com pérola (...) Elas sonham três noites a fio com um homem que só viram de relance à porta do café. Elas trazem no saco das compras uma pequena caixa de plástico que serve para pintar a borda dos olhos de azul. (...) Elas namoram muito. Elas namoram pouco. Elas não dormem a pensar em pequenas cortinas com folhos. Elas arrancam os primeiros cabelos brancos com uma pinça comprada na drogaria. Elas gritam a despropósito e abraçam-se aos filhos acabados de sovar. Elas andam na vida sem a mãe saber, por mais três vestidos e um par de botas. Elas pagam a letra da moto ao que lhes bate. Elas não falam dessas coisas. Elas chamam de noite nomes que não vêm. Elas ficam absortas com a mola da roupa entre os dentes a olhar o gato sentado no telhado entre as sardinheiras. Elas queriam outra coisa.
                                                                                                       
 ( Maria Velho da Costa, Cravo) 


Famosa pelas Novas Cartas Portuguesas, publicado em 1972 juntamente com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa ficou para sempre com o epíteto de uma das "Três Marias" e associada a uma escrita mais ou menos revolucionária.
Com vários prémios recebidos, entre os quais se contam o Prémio Camões, em 2002, e o Grande Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, em 2013, a sua obra tem a ver com a busca incessante da palavra, comum a todos os grandes escritores. Ela própria definiria a literatura como "a palavra no tempo, na história, no apelo do entusiasmo do que pode ser lido ou ouvido, a busca da beleza ou da exactidão ou da graça do sentir." E do livro diria que "é acto lúdico contra vários horrores. Um acto de riso". 
Talvez injustamente esquecida, como tantas vezes acontece, Maria Velho da Costa é um nome singular da literatura portuguesa. Faria 82 anos a 26 de Junho, no mesmo dia da minha mãe. 
Ficamos todos um pouco mais pobres.

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