segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Uma noite com Poveda

Sou suspeita. Tenho pelo flamenco uma paixão  desmedida, que surgiu quase inesperada e depois cresceu, fazendo-se mais profunda e mais intensa ao longo do tempo, ainda que, como é próprio do que vem do coração e só pode sentir-se, não a consiga explicar. Só sei da emoção daquela música que se me entranha na pele e na alma, que me arrepia e me comove, que me abala no mais fundo de mim e que se me tornou indispensável, fundamental.
Por isso já vi muitos artistas e assisti, até hoje, a muitos espectáculos de diversos tipos, e a excelentes interpretações, de canto, de dança, de guitarra, de palmas, ou de tudo junto. Tantos, que nem sei se os recordo a todos. Assim, de repente, vêm-me à memória Paco de Lucía, Canales, Estrella Morente, La Yerbabuena, Rafael Amargo, Cigala...
Ontem, foi a vez de Miguel Poveda. Conhecia-o há algum tempo, lembro-me de como me impressionou desde logo a sua voz poderosa, ou o inesquecível tema A Ciegas, no filme de Almodóvar, Abrazos Rotos. E tenho até um disco dele, de que gosto muito: Coplas del querer.
Mas ao vivo é outra coisa. Agora posso entender de maneira mais exacta e rigorosa por que é considerado o melhor cantor flamenco da actualidade.
E, no entanto, Miguel Poveda não é apenas um cantor de flamenco; é, sem dúvida, um dos melhores intérpretes da música mundo que, sem renegar a sua música de raiz, o seu ponto de partida, canta também a copla (canção popular espanhola), ou as palavras dos poetas (Lorca, Miguel Hernandez, Rafael Alberti, entre outros), expressando-se em diferentes géneros, cruzando sonoridades, incorporando um leque vasto de referências e influências, aventurando-se até pelo fado, e demonstrando assim  que flamenco e fado não são no fundo mais que o avesso e o direito de uma mesma inquietação interior, de uma dor pungente, que explode repentina, torrencial, incontida. E que o flamenco não é apenas cigano, ou andaluz. Porque, apesar de possuir dotes artísticos excepcionais, Poveda é de origem catalã e nasceu numa família sem tradição musical.
O espectáculo de ontem chamava-se "Íntimo" e foi de intimidade que se tratou. Acompanhado apenas pela guitarra de Chicuelo e o piano de Joan Albert Amargós, ambos virtuosíssimos também, foi a figura franzina de Miguel Poveda, as mãos enormes e a garra imensa daquela voz única, tão poderosa que quase dispensava microfone, que dominaram a noite, numa entrega apaixonada que  se exprime  com o corpo todo e que, misturando originalidade e inovação, tradição e modernidade, nos traz o encanto e a magia da música, nos silêncios e nas voltas do canto. 
Depois de uma noite como esta não se é o mesmo. Impossível não se sentir tocado pela garra e o arrebatamento que desfilam diante de nós durante duas horas e meia, pela  emoção à flor da pele que também nos estoura  no peito, pela simplicidade e cercania do que não deixa de ser um acto de amor.
É que, no fim, como ele próprio disse ontem: deixou-me um pouco de si e leva com ele um pouco de mim.

4 comentários:

  1. Não sou apreciador do flamenco, Isabel.

    Beijinho

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    1. Felizmente, não gostamos todos das mesmas coisas. Em termos musicais, eu não gosto de ópera, por exemplo.

      Beijinho

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  2. As paixões, como outras coisas não se explicam, mas podem-se documentar e a sua explicação - mesmo explosivamente apaixonada - é muito válida e edificante. Resta, talvez, acrescentar que o Flamenco é Património Imaterial da Humanidade há muito mais tempo do que o Fado. Gosto do tango, do fado e do flamenco, por esta ordem. Mas também gosto de ópera e opereta, enfim, de todo o bel canto.

    Beijinho :)

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    1. Ainda estava sob o feito que o concerto teve em mim e por isso o meu texto é tão "explosivamente apaixonado".
      Também gosto de tango e de fado, depois do flamenco (por esta ordem). :)
      Agora o bel canto é que já não faz o meu género. Mas gosto de jazz e de blues, por exemplo.

      Estava aqui a preparar-me para ir à minha escola (daqui a pouco) falar sobre Metas Curriculares e pensava justamente que a leitura, a literatura, modifica-nos. Como a música. Ou se calhar esse é justamente o efeito que arte tem em nós, além da fruição estética mais imediata.
      Sei lá, ponho-me para aqui a pensar em mil e uma coisas...

      Beijinho :)

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