quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Em casa, no Saldanha



Sou filha das Avenidas Novas. Foi o bairro onde nasci, onde cresci e onde vivi os primeiros vinte anos da minha vida. Nesta rua, que continua a ser "a minha rua"; neste jardim, onde brinquei tantas tardes, inocente e despreocupada, num tempo em que o meu mundo ia pouco mais além  da meia dúzia de ruas que conhecia de cor, com nomes de condes, duques e viscondes, que confundiam tanta gente: Visconde Valmor ou Conde Valbom? Marquês de Tomar ou Duque d'Ávila?
Estranhamente, ou talvez não, passados já mais de vinte anos sobre  a mudança de casa e de bairro, continua  a ser aqui, nas Avenidas Novas e em particular no Saldanha, que me sinto em casa. Mesmo que o bairro já pouco se assemelhe ao que era naquela altura. Os cafés e as lojas já não são os mesmos, o padeiro e o leiteiro já não vêm de porta em porta, já não há o Val do Rio, nem a drogaria, nem a sapataria na esquina, ou o Alberto confecções.  Na Duque d'Ávila, já não passam os eléctricos. Muitos prédios, incluíndo o meu, desapareceram e foram substituídos por outros, novos e modernos, ocupados em grande parte por  escritórios e serviços. E, assim, pouco a pouco, o bairro tornou-se mais impessoal e incaracterístico. Na minha rua, apenas o prédio das tintas, na esquina, é hoje a única reminiscência de um tempo que  não volta. E já há poucos prédios como o meu. Era um daqueles edifícios antigos, revestido com azulejos verdes e brancos, de cinco andares, sem elevador. A casa era enorme, com soalho de compridas tábuas de madeira, a cheirar a cera, nove divisões e  um corredor de dez metros no meio, cenário de toda a espécie de correrias e brincadeiras, transformando-se sucessivamente em avenida, pista, palco, ou qualquer outro lugar onde nos levasse a nossa imaginação.
Ainda me lembro de como nos custou, a todos, sair  daquele prédio que simbolizava toda a nossa vida, onde a minha mãe tinha nascido e onde morava uma parte da família. Do nó no estômago quando, depois do prédio demolido, passávamos pelo enorme buraco que até então tinha sido a nossa casa. De como evitávamos, até, passar ali. Para não sofrer. E de como, apesar de tudo, a nossa vida continuou a centrar-se no Saldanha, porque aquele era (e é) o nosso mundo. No início, para ir a qualquer lado, íamos sempre primeiro ao Saldanha. E, até há muito pouco tempo, o lanche com a minha mãe, na Versailles, fazia parte dos nossos rituais dos Domingos à tarde.
Só em Alfragide, onde vivo há quase tanto tempo como vivi aqui, neste lugar da minha infância e adolescência, voltei a encontrar algo parecido com este sentimento de pertença, voltei a conseguir sentir e dizer "a minha casa". Mas, ainda assim, quando à noite sonho com uma casa, é sempre a grande casa antiga da minha infância que surge, imponente e acolhedora. Hoje, gosto de viver em Alfragide. Mas não é a mesma coisa. Às vezes, dá-me ainda a nostalgia deste lugar; então volto a passar na minha rua, no meu jardim. E, apesar de todas as diferenças, continuo a sentir que este é o lugar onde eu pertenço. 

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