quinta-feira, 6 de junho de 2013

Resistir



Uma língua é o lugar de onde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso  a voz do mar foi a da nossa inquietação.
(Vergílio Ferreira)
 
 
"A unidade da língua não se faz por imposição de acordos ortográficos; faz-se, como muito bem perceberam os hispânicos e os anglo-saxónicos, pela partilha da sua diversidade. 
(...)
Pode haver mil acordos pretensamente unificadores, mas os brasileiros continuarão a dizer trem, enquanto nós dizemos comboio, vão de ônibus, enquanto nós vamos de autocarro, eles chamarão geladeiras aos nossos frigoríficos. (...) Não é bom nem é mau: é um facto. Que deve ser assumido com toda a naturalidade. Qualquer idioma, aliás, só tem a ganhar se for plural e multifacetado. É um sinal inequívoco de que está vivo.
(...)
Em sociedades verdadeiramente cultas, as regras ortográficas mantêm-se praticamente sem alteração.
(...)
A etimologia é configuradora de memória e de cultura. Línguas que mantêm na escrita a memória etimológica tornam-se mais aptas à elaboração e construção do pensamento. (...) As palavras, ao ficarem desprovidas de raízes, acabam tristemente desfiguradas. O maior factor de unidade e estabilidade de uma língua é a etimologia.
(...)
O conceito de base do acordortografiquês é adequar a escrita à oralidade. (...) Afirmar que uma língua deve ser escrita "como se lê" é puro disparate: se a escrita antecede a leitura, como é que a norma ortográfica pode estar condicionada por algo que lhe sucede em vez de a preceder?
(...)
Reduzir as palavras à fonética, por imposição de um acto legislativo e não pela natural progressão civilizacional, é inaceitável. Porque faz tábua rasa de séculos de elaboração e evolução linguística.
(...)
A maior originalidade  do AOLP (...) é a manutenção de um sem-fim de "facultatividades". (...) O que significa aquele palavrão? Significa a convicção implícita por parte dos membros do AO de que a unificação ortográfica é inalcançável.
(...)
A variedade lexical, vocabular, sintáctica e ortográfica de cada comunidade falante de língua portuguesa (...) é um sinal inequívoco de riqueza cultural. Suprimi-la é um atentado de lesa-cultura.
(...)
O acordortografiquês tem enfrentado inúmeros actos de resistência. Que não é passiva. Pelo contrário, é - e gaba-se de o ser - muito activa. Abrangendo gente de todas as idades, profissões, ideologias e camadas sociais.
A resistência abrange muitos dos mais qualificados utilizadores da língua portuguesa na sua versão escrita.: escritores, cientistas, linguistas, jornalistas, professores, pedagogos, historiadores, (..) cronistas, (...) bloguistas (...)
(...)
Recusar ler na grafia acordística é um acto de cidadania acessível a qualquer de nós. (...) Certas livrarias já têm secções específicas para livros destes, pensando precisamente nos portugueses que recusam o acordo."
 
Estas são algumas passagens do livro de Pedro Correia, que acabei agora de ler e de que já falei aqui. Chama-se Vogais e consoantes politicamente incorrectas do acordo ortográfico e recomendo-o vivamente. Numa linguagem simples e directa, explica o absurdo deste acordo, que não chega a ser acordo nenhum, o seu surgimento baseado em critérios políticos e não científicos, e todas as "trapalhadas" que dele advêm. E o caos em que se tornou, hoje, a utilização da língua portuguesa. O melhor exemplo disso é, aliás, o facto de apesar de ser "obrigatório" utilizar o AO nas escolas, os Exames Nacionais admitirem as ortografias pré e pós acordo, que podem, inclusivamente,  coexistir na mesma prova, feita pelo mesmo aluno. Ou seja: tudo é permitido.
Hoje, já quase ninguém defende o AO, pelo menos abertamente;  as opiniões dividem-se entre os que se lhe opõem  de forma veemente e se recusam a segui-lo e a aplicá-lo e um grande número de indiferentes, aqueles para quem quase tudo "tanto faz", que serão talvez os mesmos que têm tendência a votar em branco, que é uma coisa que eu também não consigo compreender. Mas isso é outra história...
A mim, que não sou de meias-tintas, dói-me na alma ver a minha língua ser assim espezinhada, vilipendiada  e mais maltratada que nunca.
Sou contra este AO, como sou contra a Nova Terminologia Linguística (de que estranhamente quase ninguém fala) e contra tudo o que contribua para o empobrecimento da língua portuguesa. Quem gosta dela,  tem o dever cívico de se insurgir contra este (des)acordo. E de lhe resistir.


2 comentários:

  1. O meu ponto de vista sobre o tema, numa vertente mais alternativa que introduzo com um exemplo simples:
    Imagine-se que temos uma falante de português nativo (brasileiro, angolano ou outro), e que quer encontrar um parceiro para concretizar um negócio. Tem três interessados: um chinês, um alemão e um português. Com quem é que ele se vai entender mais facilmente à partida? Com o que fala: “nhon nhon nhon”, com o que diz: “brritz brritz brritz”, ou com aquele com quem conversa: “qual foram as tuas primeiras?” “ no meu caso foi mamã e papá” “coincidência, eu também… parece que temos muita coisa em comum…”

    Portanto isto de falar a mesma língua é uma vantagem natural à partida. Se pensarmos que o mundo de falantes portugueses deverá andar à volta dos 250 milhões, daqui se vê o potencial desta vantagem natural, inclusive nestas questões mais terra-a-terra, como negócios e outros.
    Metam-se 250 milhões de pessoas numa sala e acho impossível que não haja duas que se entendam para fazer um negócio.

    Portanto a língua é para nós de uma importância quase de sobrevivência. Diria mesmo que no limite justificaria até um ministério próprio. Agora se o acordo ortográfico é a chave dessa política, duvido, mas pelo menos tem um mérito de pela primeira vez ter-se tentado alguma coisa em concreto e isso já vale muito. Se foi mal feito corrige-se, melhora-se, altera-se, agora pelo menos tentou-se um passo relativamente inédito e bem ou mal concretizaram-se acções, para além das discussões académicas. Eu acho sempre que mais vale dar um passo mesmo que se caia a seguir (e nos levantemos de novo, o que também é uma aprendizagem que vale muito), que passar a vida toda a gatinhar e não sair disso mesmo.

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    1. Sérgio, apenas um conselho: leia o livro do Pedro Correia! Está lá tudo...

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