terça-feira, 14 de outubro de 2014

Banalidades dos dias


Virei a mesa de trabalho de frente para a janela, para poder ir olhando a rua quando levanto os olhos do que me ocupa e absorve, que se me concentro a sério posso até esquecer-me que o mundo existe.
O vício, trouxe-o agarrado ao corpo dos últimos quatro anos, dias inteiros a olhar a Praça de Alvalade até lhe conhecer o mais pequeno recanto e todos os cambiantes de luz e de cor na passagem das horas. E de imaginar as vidas de quem apressada ou demoradamente passava lá em baixo, adivinhando percursos e histórias que jamais poderia confirmar nem desmentir e não eram senão puro exercício da imaginação, de imediato esquecidas. Outras vezes nem chegava a fixar o olhar;  deixava-o à solta, a deambular vadio e indolente pela rua e pelo céu fora, fantasioso e disperso, enquanto os ruídos da cidade e dos aviões, em constantes chegadas e partidas, me sossegavam e me levavam para longe, no doce embalo do sonho.
A minha rua de agora já não é como a Praça de Alvalade, e o que vejo da minha janela é muito mais silencioso e quieto. Mas o hábito instalou-se, permanece igual.
E hoje, enquanto olhava distraidamente quem passava lá fora, lembrei-me desta canção de Brassens:

Je veux dédier ce poème
À toutes les femmes qu'on aime
Pendant quelques instants secrets,
À celles qu'on connait à peine
Qu'un destin différent entraîne
Et qu'on ne retrouve jamais.

À celle qu'on voit apparaître
Une seconde à sa fenêtre
Et qui, preste, s'évanouit,
Mais dont la svelte silhouette
Est si gracieuse et fluette
Qu'on en demeure épanoui.

A la compagne de voyage
Dont les yeux, charmant paysage
Font paraître court le chemin
Qu'on est seul, peut-être, à comprendre
Et qu'on laisse pourtant descendre
Sans avoir effleuré la main

(...)

Chères images aperçues
Espérances d'un jour déçues
Vous serez dans l'oubli demain
Pour peu que le bonheur survienne
Il est rare qu'on se souvienne
Des épisodes du chemin

(Fotografia de Maria Cristina Guerra)

4 comentários:

  1. Isabel: Gostei! E gostei porque para mim o descanso mais conseguido é aquele em que o olhar e o pensamento fica "à solta, a deambular vadio e indolente pela rua e pelo céu fora, fantasioso e disperso"… E, em seguida, a consolidação de um perfeito descanso é sempre uma ída ao cinema. Maravilha!!…
    Beijinho para si e bom descanso :)

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    1. Agora já não sei viver sem ser assim. Preciso de ir olhando a rua... manias! ;)

      Obrigada. Beijinho também para si.

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  2. Há vícios bons ou, por outra, nem todos fazem mal... ;)

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    1. Sem dúvida, Paulo! E há também vícios ditos maus que sabem muuiito bem. Veja-se o caso da preguiça (um pecado capital), mas que nos é por vezes fundamental. Para o reequilíbrio... ;)

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