terça-feira, 7 de outubro de 2014

Uma questão de prioridades


No regresso à escola, há várias coisas que me surpreendem e impressionam e até algumas que, de certa forma, me horrorizam. Parece-me chocante, por exemplo, que alunos de catorze ou quinze anos saibam o que é um "complemento oblíquo" e um "verso decassilábico", mas não sejam capazes de dizer qual o assunto de um texto que acabaram de ler. Ou que saibam o que é uma "palavra derivada por parassíntese", mas não conheçam o significado de "modesto", de "solícito", ou de "esmerado".
É talvez por isso que volto a ouvir uma coisa que apenas me tinham dito há  anos, na altura em que comecei. Que falo "caro", com palavras "sofisticadas", segundo me disseram hoje. 
Infelizmente, não se trata de exagero meu. E não me refiro apenas a um ou dois exemplos isolados, mas a um grande número de alunos, que é provavelmente a maioria.
Mas há outras coisas. Muitas outras. Hoje, há também o drama dos Centros de Estudos ou de Explicações, que se tornaram, mais que uma moda, uma praga e um verdadeiro "negócio da China", com efeitos absolutamente nefastos, uma vez que há neles pessoas de formação duvidosa que fazem os trabalhos de casa aos meninos e os impedem de ser autónomos. Chegam à escola com tudo feito, mas num discurso que se percebe à distância não ser o deles, cujas frases têm até, muitas vezes, dificuldade em ler. E a qualquer pergunta que se lhes faça para além do que ali está escrito, não são capazes de responder. Este é um exemplo de hoje: "Aqui, nesta frase, temos um paradoxo". "E o que é um paradoxo?" "Sei lá!", é a resposta.
Faz-me confusão que os pais não se apercebam disto, que se limitem a deixar os filhos manhãs ou tardes inteiras nestes "centros", achando que é assim que eles estudam mais e melhor, quando é exactamente o contrário que acontece.
Mas, no fundo, somos todos um pouco responsáveis pelo estado a que isto chegou. Porque tendemos ao facilitismo e à infantilização do discurso. (De resto, apesar da educação literária ter sido reintroduzida (e bem) pelas Metas Curriculares, ainda há quem defenda que grande parte dos textos não deveria fazer parte dos programas por se tratar de textos "muito difíceis"). Porque há muito a preocupação do exame e da preparação para responder de forma mais ou menos formatada a um modelo específico de prova, quando se devia ver mais longe e ensinar a pensar, a ser capaz de manifestar uma opinião e de defender uma ideia com argumentos, a ler, a escrever e a falar com correcção. E já agora também com prazer, se não for pedir muito...
Não se pode simplesmente fazer porque nos dizem que "é assim". Pergunto-me o que teria acontecido se todos os professores se tivessem recusado a ensinar o Acordo Ortográfico, que é uma aberração que mutila a língua. No ponto em que estamos, uns sim, outros não, outros assim-assim e toda a gente escreve de todas as maneiras. Como se isso não fosse relevante.
Enfim, poderia multiplicar os exemplos, mencionar  a falácia da escola inclusiva e tantas outras coisas. Mas o que me parece óbvio é que algumas boas vontades não chegam; e que enquanto as prioridades estiverem todas confundidas e erradas, dificilmente a Escola poderá fazer um trabalho sério e, acima de tudo, eficaz, cumprindo a sua função primeira, essencial na definição do modo como pensamos, como sentimos, como vemos o mundo.

14 comentários:

  1. E agora do lado do aluno que nunca soube o que são complementos oblíquos, modificadores circunstanciais ou orações subordinadas adjetivas relativas explicativas (okay, digo estes três porque estes três são dos poucos que realmente sei), digo que sim, que é mesmo isto que acontece. Digo que sim, que achei injustas as minhas notas porque não sabia os nomes das pequenas coisas da gramática, mesmo que os professores me dissessem que as usava de uma forma única. É triste saber que decorar é melhor classificado que o compreender, o perceber e o fazer por si. O experimentar e o errar são aberrações nas salas de aula onde apenas parece haver tempo para ladainhas papistas à moda de um século que já acabou há tempo demasiado.

    Porém, confesso que me dava muito gozo quando o professor dizia alguma palavra menos comum e o único que a conhecia era aqui o parvo com a mania de ler dicionários...

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    1. Rafael, não concordo inteiramente consigo, na medida em que não defendo a abolição do ensino da gramática e há também certas coisas que têm mesmo que se decorar.
      O que é importante é que não se faça apenas isso. Há alguma gramática que tem que se saber, porque ao perceber, mesmo genericamente, como funciona a língua podemos compreendê-la e utilizá-la de forma mais correcta. Não se pode é cair no exagero actual e ainda menos com aquele palavreado que agora inventaram e que quase é ainda pior que o AO.

      Abreviando, o que eu defendo é que a tónica se ponha no essencial, que deverá ser sempre isto: pensar, ler e escrever. Hoje pensa-se pouco na escola e pensa-se pouco a escola.

      Quanto a si, espero que não leia apenas dicionários, porque há leituras bem mais interessantes, garanto-lhe...

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    2. Percebo-a, a construção do que disse não foi a mais feliz.

      A gramática é importante, sim, mas daí a basear as aulas todas apenas em teoria, apenas dando os nomes e explicações sumárias das coisas perde-se alguma coisa.

      Penso que ficou claro que prefiro aulas práticas a teóricas, porém, é óbvio, sem a teoria não seria capaz de pôr nada em prática. O problema é o exagero de tempo dado à teoria em relação à prática. No fundo, aprende-se muito, mas apreende-se pouco.

      Quanto aos dicionários, não, não leio apenas dicionários! Não querendo com isto dizer que um dicionário de sinónimos não seja a coisa mais interessante impressa no mundo, sei que há muito bons utilizadores dos significados que nem vêm nos dicionários.

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    3. Rafael, em relação aos dicionários, eu estava, naturalmente, a brincar.
      Quanto ao resto acho que, pelo menos em parte, concordamos. No que diz respeito à gramática pela gramática e à tónica posta no que não é muito importante, deixando de lado o essencial, por exemplo.

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  2. Complemento obliquo? Deduzo que seja um movimento de uma qualquer arte marcial. Quando entrei para a faculdade fiz tres provas específicas: matemática, física e portugues. A prova de física requeria acima de tudo treino, ou seja, desbobinar formulas em tempo record tipo dar à manivela. Mas ainda assim era justa: quem se esforçasse safava-se. Já a de matemática exigia conhecimentos fora do programa (o que era genial...) e toda ela era para um nível muito avançado, logo era injusta porque quem não tinha suportes externos à escola dificilmente se safava. Julgo que tinha a ver com o facto de ser uma prova feita por professores universitários sem grande noção do que se aprendia no secundário, altamente motivados da ideia de dar uma lição aos putos daquele tempo que cresciam numa lógica de facilitismo (funcionou já que mais de metade dos alunos que fizeram a prova tivera zero). Já a de português era trivial e podia perfeitamente ser uma prova da quarta classe. Lembro-me ainda hoje algumas perguntas: "escreva uma frase usando o verbo decorrer..." "ovo é da mesma familia de oviparo?..." Não admira que as médias a matemática fossem muito inferiores às restantes...

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    1. Sérgio, infelizmente o complemento oblíquo não é um movimento de uma qualquer arte marcial, mas faz parte de mais uma atrocidade contra a língua portuguesa, inventada por um grupo de linguistas mais ou menos "eminentes", que em vez de se entreterem entre eles com aquelas coisas resolveram "impingir" ao mundo a sua "Terminologia Linguística" ((é como lhe chamam), o que foi aceite pela classe política (maioritariamente ignorante, hélas) aprovado e tornado lei e pretende que as criancinhas desde a mais tenra idade aprendam coisas como: "quantificador existencial", "modificador restritivo ou apositivo", "derivação não afixal", "composição morfossintática" "adjectivos numerais, qualificativos e relacionais", "sujeito nulo expletivo", etc. Poderia multiplicar a lista de barbaridades, mas acho que já chega.
      O resultado? Fala-se e escreve-se cada vez pior e sabe-se cada vez menos. O pior é quando se insiste nisto em detrimento da leitura e da escrita.
      De resto quanto ao que diz não concordo nada com essa ideia feita que o português é sempre mais ou menos "trivial" e a Matemática é que é muito difícil. Afinal, mesmo para perceber a Matemática há que saber ler e escrever. Quanto mais, melhor.
      (Talvez não tenha sido exactamente isso que quis dizer, Sérgio, mas pareceu-me que estava de certo modo implícito).
      É que, ainda hoje, há muito a ideia de que "Português não é preciso estudar", o que não é, de todo, verdadeiro...

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    2. Curiosamente, desta vez o objetivo não era dizer que existem áreas de conhecimento mais fáceis que outras, mas referir o facto de que ao se exigirem conhecimentos para além daqueles que se ensinam está-se a aplicar um filtro socioeconómico aos alunos, uma vez que aqueles que têm condições para dispor de apoio extraescolar ficam em vantagem perante os restantes. De qualquer forma acredito que atualmente as coisas sejam diferentes.

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    3. Também me pareceu que não seria isso, Sérgio, mas podia também fazer-se essa leitura.
      Actualmente, as coisas são muito diferentes sim. Mesmo nestes quatro anos em que estive noutras funções, houve mudanças significativas. O problema, hoje, é justamente o facto de se exigir pouco (entre outros, claro). E a ideia de que o apoio extraescolar é uma obrigação e uma vantagem quando essa "ajuda" na maior parte dos casos só "desajuda".

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  3. Estou inteiramente de acordo. Receio que nas escolas ninguém lhe dê ouvidos... Mas não se resigne. Mesmo derrotados à partida, não devemos deixar de lutar.

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    1. José, não sou de me "resignar". Aliás, o facto de dizer muitas vezes, em voz alta, o que penso, já me valeu muitíssimos dissabores. Nem imagina...
      No entanto, continuo a fazer o que me parece mais acertado; e não me sinto "derrotada". Faço o que posso...

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  4. Isabel,
    sou professora do 1º ciclo e neste fim de semana pedi aos alunos como TPC, entre outras tarefas, para consultarem no dicionário o significado das palavras ótico e óptico. Talvez com exemplos práticos se perceba melhor a «aberração» que é este Acordo (des)ortográfico.
    Fernanda

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    1. Infelizmente, Fernanda, além do AO, há outras aberrações de que importa falar. Foi o que quis fazer.

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    2. Outro exemplo, no ano passado quando estava acesa a polémica sobre os quadros de Miró pedi aos meus alunos para investigarem quem tinha sido Miró. Fui logo confrontada com a opinião de uma mãe que dava conta que as crianças eram muito novas para se preocuparem com esses assuntos... Na minha opinião «é de pequenino que se torce o pepino», as crianças desde pequenas devem ter a noção do mundo que as rodeia e saber um pouco de cultura geral nunca fez mal a ninguém, para além das matérias escolares. Mas isto sou eu, às vezes sinto-me um «David» face a tantos «Golias»...
      Fernanda

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    3. Bom, "é de pequenino que se torce o pepino", mas convém que haja limites. A uma filha de um amigo meu, que estava no segundo ano, a professora mandou, como trabalho de casa, fazer um poema. Como em tudo, o bom senso também é preciso...

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