sexta-feira, 22 de junho de 2012

A derradeira viagem



Primeiro senti só uma picada, ao de leve, nas costas. Depois, a dor tornou-se mais aguda. Aos poucos fui-me apercebendo de que estava realmente a ser mordida por dois dentes duros e aguçados, que se iam espetando na minha pele.
Agora já não me restava qualquer dúvida: tinha chegado a minha hora e o fim estava cada vez mais próximo. Não conseguia entender a sensação estranha que me invadia.
Tudo aconteceu de um modo demasiado rápido. De repente fiquei às escuras, como se o mundo se tivesse apagado subitamente e andei muito tempo às voltas, sentindo que me desintegrava. Mas, ainda assim, partida em mil pedacinhos que procurava a todo o custo voltar a reunir, no meio de toda aquela humidade, debatia-me como podia, chocando contra os dentes e o céu da boca, às voltas com a língua, numa luta quase erótica, que eu sabia que jamais venceria.
Esta história não podia ter um final feliz. Quando pensava nisso, o meu desespero aumentava. Mas tinha também a certeza absoluta de que era impossível voltar atrás.
O caminho tornou-se depois mais estreito. Naquele momento percorria um túnel que parecia interminável, aos trambolhões, caindo e levantando-me, tropeçando a cada passo, num turbilhão amassado dos restos de mim. Era uma aflição muito grande. Pensei na minha mãe. Tive medo e quis gritar, mas o grito ficou preso e não se ouviu. Ninguém veio em meu auxílio. O que viria depois? Teriam todos, antes e depois de mim, passado por tudo aquilo?
Enquanto percorria aquele túnel que parecia não ter fim, perguntava-me por que razão todas as experiências fundamentais das nossas vidas haviam de ser marcadas por tamanha solidão.
Finalmente, o túnel acabava. Encontrei uma grande clareira, onde pude deitar-me e descansar. Fechei os olhos. Tinha sido uma longa viagem e, devagar, uma enorme tranquilidade apoderou-se de mim. Nunca tinha experimentado uma tão grande paz.
Afinal, apenas se cumpria o meu destino de cenoura. Toda a vida soubera que os meus dias terminariam desta maneira, triturada e mastigada pela boca gulosa de um coelho qualquer. E, no entanto, aquela emoção derradeira fazia-me feliz. Então tive vontade de agradecer e de ficar para sempre ligada ao coelho que me dera a conhecer o outro lado de mim. 

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